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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.5.09

Uma folha do meu cadastro, contra canhotos, endireitas e bonzos...


Com tanta gripe porcina e anúncios a papas de farinha de milho, o espaço do comentário político, mesmo quando lírico, fica comprimido por falta de adequados conhecimentos médicos e psicanalíticos. Aliás, um jornal de referência, que gentilmente transporta um comentário que emiti sobre Manuel Alegre, qualifica-me como alguém do centro-direita e inclui, na minha biografia, uma coisa que nunca fui: adjunto de secretário-geral ou secretário-geral de um partido cujo alvará ainda é acenado numa determinada bancada parlamentar. É evidente que este ultimo cargo foi ocupado por um conhecido autarca e agora comentador televisivo das segundas-feiras futebolísticas, o meu querido amigo Fernando, que actualmente é do PSD, tal como o que antecedeu, Vieira de Carvalho. Fora esta correcção, que me permitiria locubrar com mais densidade sobre financiamentos partidários e almoçaradas no "Ti Matilde" dos adjuntos de secretário-geral, detesto ser qualificado como do centro-qualquer-coisita, pelo que prefiro ser mesmo dito de direita, porque é bem mais democrático ocupar este espaço, mesmo quando me sinto à esquerda da actual esquerda, só porque me situo, como me ensinou o professor Miguel Reale, na esquerda da direita, isto é, um liberalão radical do centro excêntrico, sobretudo perante este situacionismo feito de governos de esquerda com mentalidade de direita e de oposições de direita que se dizem da esquerda moderna, dado que de tanto andarmos com preconceitos canhotos, restam os endireitas da demagogia, para que dominem estes nem carne nem peixe que, no PS e no PSD, se devem qualificar como autênticos bonzos.

Por esta e por outras, fui reler uma carta minha, datada de 30 de Novembro de 1985. Quase mantenho tudo quanto nela escrevi, numa altura em que Vital Moreira ainda era cunhalista e muitas das gentes que hoje se dizem do centro-esquerda e do centro-direita ainda andavam pela extrema-esquerda e pela extrema-direita, longe dos ministerialismos que hoje os envaidecem e pombalizam. Mesmo deixando transparecer algumas ingenuidades, sobretudo quanto aos neomaquiavélicos e talleyrands, não deixo de publicitar aqui e agora esta folha do meu cadastro:


Exº Sr. xxx.

Porque Deus escreve direito por linhas tortas, os desígnios do "acaso" e o providencial da "necessidade" fizeram eleger V. Exª como Presidente da Comissão Política do yyy, com uma nova equipa directiva, a que tenho a honra de pertencer. Mudança de líder e, porque o estilo é o homem, uma inevitável alteração do discurso ideológico do partido, com redução da chamada sensibilidade liberal à dimensão de mera sensibilidade. Acontece que, no partido, sempre me afirmei como alguém da direita liberal, desde a moção que subscrevi no último congresso a várias intervenções na comissão política e nos conselhos nacionais.

Sempre estive próximo das linhas de força do discurso do Dr. Lucas Pires, menos pela amizade que a ele me liga, do que pela identidade de origens e de percurso políticos. Não considerei e continuo a não considerar tal posição como incompatível com o apoio ao Senhor xxx e, muito menos, incompatível com o fazer parte da equipa que V. Exª dirige. Não foi por acaso que, no primeiro conselho nacional depois das últimas eleições, fui um dos primeiros conselheiros a propor expressamente a liderança do Senhor xxx e, simultaneamente a proclamar a minha solidariedade activa para com as posições políticas do Dr. Lucas Pires.

Mas para que não surjam equívocos e eventuais acusações de oportunismo, sinto o dever de manifestar-lhe expressamente estas posições. É que podem mudar-se os tempos, mas as "viradeiras" não me fazem mudar de vontade e, muito menos de ideário. Ora, o silêncio pode gerar nebulosas e não queria deixar de clarificar situações, até porque não sei comprometer-me com reservas mentais. Com efeito, apenas aderi ao yyy na sequência do V Congresso, acolhendo-me à sombra da bandeira do nacionalismo liberal. Porque, até então, nunca me seduziu o carisma de Freitas do Amaral (carisma, por carisma, sempre fui sá-carneirista), nem os preconceitos de esquerda do centrismo que afectavam os dirigentes históricos do yyy.

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Foram estas as raízes de direita cultural que nos marcaram, permitindo-nos observar a revolução de 1974 como inevitável consequência do império da esquerda. O PREC foi para nós a continuação da resistência e, atirados para o exílio, a prisão, o saneamento ou a simples marginalidade, não pudemos, ou não quisemos, ser actores da encenação partidária ocorrida a partir de 1974. Muitos de nós vieram apenas a reencontrar-se com a política activa através da imaginação criadora do Dr. Lucas Pires, já depois da chamada revolução conservadora ter feito renascer a direita ocidental.

A história vivida e a história estudada fez-me anti-revolucionário e o pendor tradicionalista fez-me acentuar o anti-absolutismo. Permaneci de direita e assumi-me como liberal. No meu caso, fui especialmente marcado pelo estudo da história das ideias políticas portuguesas e pela redescoberta do nacionalismo liberal de Garrett, Herculano, Pascoaes e Leonardo Coimbra. E não é por acaso que, conquenta anos antes do Dr. Lucas Pires, já Fernando Pessoa teorizava o nacionalismo liberal. Não se trata evidentemente do neoliberalismo estrangeirado, citador dos Hayeks e outros autores da moda. E muito menos da cedência a qualquer costela jacobina.

Considero, aliás, que a nossa direita integralista e salazarista sempre teve preconceitos em convergir com o liberalismo regenerador e o republicanismo conservador, esquecendo que grande parte dos nossos liberais apenas procurou restaurar o consensualismo pré-pombalino. É este o meu "ser de direita liberal".

Marcado pela mesma fonte axiológica que levou à democracia-cristã original, ainda corporativa e hierarquista (não é por acaso que o nosso primeiro partido democrata-cristão se chamou nacionalista); fiel à mesma matriz que gerou a democracia social do pós-guerra, institucionalista e personalista, considero que este fundo permanente de valores pode agora iluminar a sensibilidade liberal, acentuando a luta contra o estatismo, socialista, social-democrata ou simplesmente tecnocrático. É esta a principal frente de combate, depois de outrora ter acentuado o anti-individualismo e o anti-colectivismo.

Aquilo que considero como a terceira geração da democracia-cristã, a síntese entre a perspectiva liberal e a perspectiva cristã, por enquanto apenas se prenuncia, ainda sem claros contornos doutrinários. Mas o renascimento liberal e conservador do Ocidente vai impulsionar essa convergência que, nos países de tradição católica como o nosso, revestirá formas diversas das sínteses alcançadas em sociedades marcadas pelo conservadorismo laicista dos partidos liberais clássicos. Nacionalista por princípio e apenas liberal por conclusão, considero que o yyy só se enraizará na sociedade portuguesa quando se portugalizar doutrinariamente.

Senti-me no dever de expressar esta minha posição através do presente meio. Julgo que a melhor forma de apoiar o Senhor xxx, para servir o partido e a nação, é não ser xxxista, no sentido de yesman. Não sou catavento doutrinário nem imobilista ortodoxo. Acredito. E uma equipa é tanto mais unida quanto melhor potenciar a integração de diferentes sensibilidades e gerações. Julgo que, na essênciam nada do que aqui afirmo constitui uma novidade para o Senhor xxx. Com todo o respeito e consideração (sic).

P.S. 1. Dois anitos volvidos, saí do partido, com o regresso de Freitas do Amaral. Ainda foi antes da queda do muro e até fui deputado à AR quando passava minhas férias de Verão no Valbom dos Gaviões, junto a São Julião de Mateus Álvares. Mas o líder parlamentar, que era adjunto do senhor XXX, só mo disse depois de acabar o período de suspensão do deputado que fui substituir. Na altura, o grupo parlamentar era numeroso: cabia todo num táxi. Mas ainda guardo o cartão de membro desse clube de soberania e o dístico para o parque de estacionamento do palácio. Mais acrescento que não estive quieto durante o PREC e logo a seguir ao 25 de Novembro ainda tive tempo para ser adjunto de um dos gabinetes do governo provisório, como o fui dos três governos eanistas. Mas formal militante de partido, só o fui enquanto ele era oposição. Sempre fui do contra. 

P.S. 2. Quando saio de uma instituição, saio mesmo, até antes de formalmente sair, especialmente quando ela perde a ideia de obra, não cumpre as regras de processo e entra em vazio de manifestações de comunhão entre os colegas ou campanheiros. Por exemplo: apesar de ter formalmente saído em 1984, nunca saí animicamente da Faculdade de Direito de Lisboa. Tal como da de Coimbra, como aluno, "status" que larguei em 1974. E estas continuam a ser as duas escolas que me fazem pertencer à "alma mater". Por isso, agradeço as manifestações de comunhão que os colegas e companheiros me transmitiram nestes últimos dias. Mesmo quando as excepções confirmam a decadência..