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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

4.7.09

O sacristão que perdeu o sentido dos gestos...


Julho, primeiros dias de um requentado Verão pré-eleitoral, quando Sócrates se preparava para o "avançar Portugal", com um novo palanque que até previa a inclusão de Alegre e dos alegristas, mas que acabou por se enredar nos pés de barro de uma simples anedota de mais um sacristão que perdeu o sentido dos gestos em plena missa. Pelo menos, o oficiante Alberto João Jardim transformou-se em paradigma da dignidade da democracia e o Presidente da República refinou no seu activismo declaratório, continuando rigorosamente vigilante quanto ao funcionamento normal das instituições. As frases sobre a matéria já estão todas escritas, mas a economia continua sem dar sinais domésticos de poder salvar-se. Tudo como dantes, com excesso de amarga palha de Abrantes.


É evidente que Pinho foram três episódios. Além dos corninhos diante de Bernardino, importa recordar que, na véspera, em plena SIC, rasgava literalmente uma folha A4, dentro da campanha negra do PS contra Manuela Ferreira Leite, protagonizada por um secretário de estado da justiça em exercício, para, no dia seguinte, logo a seguir à demissão, ter ido, o próprio Pinho, à mesma estação televisiva fazer pior emenda do que o soneto, numa arenga contra os partidos e a classe política, em nome de um país real que só o conheceu porque ele foi ministro de um partido em maioria absoluta. Ontem, tudo fechou em ameaça de "pantouflage", quando Berardo lhe foi publicmanete oferecer emprego, demonstrando como as forças vivas estão habituadas a tratar ministros... da economia.


A caricatura não passou de mais um normal anormal das emoções humanas e revela quanto se perdeu o sentido do humor, esse respeito público pelo riso que é um supremo acto de inteligência e de humanismo, até porque o homem é afinal o único animal racional, dado que ser o único que também sabe rir. Agora, restam-nos as piadas de mau-gosto da ministra rodriguinha e os "jamais" de Mário Lino, mas a este, mais gafiento do que Pinho, como assume a postura de gajo porreiro, ninguém o leva a mal. Pior é a imagem transmitida por esta sacristanagem da democracia, dado que o parlamento quase entrou em ritmo da palhaçada, fazendo esquecer que tem havido um belo esforço de redignificação da instituição, desde o regimento de António José Seguro ao renascimento do conceito de comissões parlamentares de inquérito. Os elogios sinceros que Paulo Rangel ontem teceu a Marques Júnior (PS), António Filipe (PCP) e Fernando Rosas (BE) são também de assinalar por quem preza a institucionalização de conflitos.


Fico a aguardar o processo disciplinar que Sócrates vai mandar instaurar a Pinho. Porque conheço, neste Estado a que chegámos, uma entidade, também estadual, que o mandou fazer, e fez, face a um alto funcionário que, eventualmente, terá proferido palavras quase idênticas às que Pinho emitiu do alto da bancada do governo. A coisa já dura há mais de ano, aproveitando, aliás, um ciclo eleitoral endogâmico, bem próximo do paradigma benfiquista de democracia, onde os vieiras todos se enfeitam com os searas e os nazarés do bloco central...


De qualquer maneira, importa assinalar que as causas da crise pinho têm mais a ver com o estado de autoclausura reprodutiva a que chegámos. A "black box" do sistema político, cada vez mais distante do ambiente social que a rodeia, enredou-se num processo decisório marcado pelo concentracionarismo capitaleiro. Essa herança da velha sociedade de corte, onde se mantém o reflexo condicionado do absolutismo, seja o do despotismo iluminado (à esquerda), seja o do reaccionarismo da viradeira (à direita). Uma tenaz mítica que tem, num lado extremo, o Marquês de Pombal, contra o medo dos jesuítas e dos távoras, e no outro, António de Oliveira Salazar, contra o medo dos sindicalistas e dos maçons.


O nosso problema é que deixámos de saber governar sem esses medos que guardavam a vinha do bem comum, embora permaneçam os subsistemas pós-autoritários dos mesmos fantasmas de direita e dos mesmos preconceitos de esquerda, avivados pelo chicote e pela cenoura de certas forças vivas que já não são a tropa com os seus eventuais golpes de Estado nem os sindicatos, entre a CGT anarco-sindicalista e o empirismo salvacionista do sebastianismo pretensamente científico do PCP:


O estadão é hoje um mero gigante com pés de barro e o situacionismo todos os dias demonstra que perdeu a legitimidade triunfalista do estado de graça, ao mesmo tempo que se passou da cooperação estratégica, entre Belém e São Bento, para uma rigorosa vigilância mútua. Quem será o próximo Sancho Pança deste Quixote?


PS: Imagem de Angel Boligan, picada aqui