a Sobre o tempo que passa: Um país das maravilhas em nova grande depressão...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.9.09

Um país das maravilhas em nova grande depressão...


Mesmo que as palas da propaganda eleitoralista digam o contrário, considero que não há uma cosmovisão, mundivivência, mundivisão ou concepção do mundo e da vida de esquerda, contra outra de direita. Nem sequer há uma ideologia categorial desses relativismos, dado que tanto a direita como a esquerda não são, estão. Isto é, não passam de posições relativas que não dependem da vontade dos actores e dirigentes políticos, mas do eleitorado, que escolhe sempre um hemicilo conjuntural. Freitas do Amaral queria ser o extremo-centro em 1974, foi posto na extrema da direita sistémica, acabando ministro socrático. Soares queria ser a esquerda do olhe que não, acabou elevado pelo povão a extremo-centro. E muitas das nossas esquerdas de hoje vêm de antigas direitas, tal como certas esquerdas nem reparam como repetem posições dos velhos miguelistas.

Tudo depende das pulsões do centrão sociológico, daquele que, aqui, se foi passando do PS para o PSD, e vice-versa. Uma pulsão libertacionista deu-nos Sá Carneiro, como, antes, tinha dado Soares. Uma pulsão decisionista gerou Cavaco e Sócrates. Uma pulsão dialoguista provocou Guterres. E não sei qual será a de 27 de Setembro. Tanto pode ser a de continuidade do sistuacionismo, como a de um "aggiornamento" da doutrina social e valorativa da Igreja, à Bento XVI. E quando aproximo Manuela desta última, não é sinal de odiar, é elogiá-la, comparando-a ao catecismo do cardeal Ratzinger e da sua longa experiência na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé e com uma bela encíclica que, no próprio dia da emissão, aqui teve elogios.

Também Sá Carneiro foi menino de bispo, mas de D. António Ferreira Gomes, o do Porto, quando se conjugava a imagem de João XXIII. E Guterres, de D. António Ribeiro e do senhor Padre Milícias. Outros rotundos elogios. Aliás, Manuela não passa de um socialismo democrático mais social-democrata, com contas rigorosas, bem mais encostada a Campos e Cunha do que ao "Compromisso Portugal". É tão keynesiana quanto Teixeira dos Santos, embora prefira o conceito indeterminado de alta velocidade ao de TGV e o de troços laranjas ao de auto-estrada cor-de-rosa.

Porque em Portugal não há liberais. Há mais autoritários e libertinos, como, mais ou menos, dizia António Alçada Baptista, nas "Conversas com Marcello Caetano", ele, António, que tinha tido a missão de desencadear um partido democrata-cristão, dada pelo Cardeal Cerejeira, quando temia a hipótese de Salazar regressar a Santa Comba. Só há liberais para a perspectiva de Mário Soares que vê tudo quanto não está à esquerda do PS como uma vaga busheira, neoliberal e neoconservadora.

Julgo que Sócrates quer mesmo que a Manuela pareça aquilo que ela gosta de assumir. O que levou Francisco Louçã, pressionado pelo Jugular, a considerar que Manuela foi, para o PS, uma dádiva dos céus, e para ele, BE, uma espada do inferno. E Sócrates sempre pode recordar a manutenção de os milicianos e da deputada Rosário Amaro da Costa Carneiro nas listas. Aliás, é ajudar Manuela dizer que ela assume o cavaquismo sem Cavaco. Dá mais votos do que os pormenores do respectivo programa de política de verdade.

Por esta e por outras é que o ministério da liturgia (etimologicamente, do grego, significa obras públicas) anda na distribuição de pagelas sobre a RAVE e os passes sociais, pintando de Lino o novo Secretariado da Propaganda Nacional, enquanto o CDS desanca no fantasma do Bloco Central, coisa que aconteceu há mais de um quarto de século e que Cavaco rebentou, para fingir que não tem havido mais Bloco de Endireitas no poder. Como se os engenheiros deste sistema político não o tivessem previsto para maiorias relativas. As maiorias absolutamente relativas do primeiro Cavaco ou de Guterres, o dos apoios de Monteiro ou do queijo limiano, foram um normal anormal que agora pode ser normalizado...

Mais importante do que fazerem programas, os partidos deveriam antes apresentar projectos de Orçamento de Estado, sem linguagem de Grandes Opções do Plano ou de fichas ideológicas do extinto Departamento Central de Planeamento. Deveriam libertar-se da canga dos trabalhos dos respectivos gabinetes de estudo, visitações à verdade, ou encontros de estados gerais e novas fronteiras. Porque se orçassem, todos veríamos como a nossa independência é uma gestão de dependências e interdependências, com dívidas bem reais, plurianuais e plurigeracionais. Este país já não é o do primeiro-ministro Soares ou o do chefe de governo Cavaco. É um país das maravilhas em nova grande depressão. Por mim, não acredito em ditaduras das finanças nem em presidencialismos....