a Sobre o tempo que passa: Eu li, Jorge. E fui lá cima, à raiz do mais além. Obrigado!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.11.09

Eu li, Jorge. E fui lá cima, à raiz do mais além. Obrigado!


Morreu como viveu, combatendo. Morreu, vivendo, até ao último grão de esperança da sua existência. Quem diz que não em nome de princípios é quem não renuncia, mesmo que resista em dissidência. Jorge Ferreira, venceu a lei da morte, em nome da lealdade básica.


Estive por estes dias a centenas de quilómetros da Igreja da Penha de França e do cemitério de Oeiras, e mais me doeu a memória da última visita que lhe fiz ao hospital. Na cama, em sofrimento, mas sempre em sorriso, de portátil e ligação à Net, com a televisão em permanência, o Jorge continuava a lutar como todos íamos lendo no seu Tomar Partido e no Facebook.


Não o conheci em coincidências facciosas. Bem pelo contrário. Conheci-o fazendo faísca de divergência de barricadas e, na última fase em que fizemos política juntos, continuámos em divergência de táctica. Por duas vezes renunciei a uma formal militância graças à força que ele fazia do outro lado. Por isso, tenho a legitimidade de reconhecer-lhe aquele profundo companheirismo dos que têm sentido de luta.


Inteligente e honrado, duríssimo na argumentação, rápido no discurso e certeiro na palavra escrita, aliando, a todo o movimento, um profundo sentido informativo, foi capaz de ascender ao estrelato político e de, com honra e inteligência, abandonar tudo, em nome da lealdade e da coerência. Não era homem de poder, porque mesmo quando estava no poder era a plenitude do antipoder. E o mesmo ardor que me fez divergir dele, também me obriga, agora, a reconhecer que sempre mantivemos uma íntima aliança de grande estratégia e uma profunda comunhão de princípios, especialmente quando nos encontrámos brevemente num projecto que um qualquer realista, como éramos, qualificaria como impotente. Mas respondemos à chamada, sujando as mãos nos compromissos...


Ficará por fazer a história de um homem de Abril, da direita de Abril, do militante e do deputado, daquele que foi precursor de incómodas comissões de inquérito ao poder bancoburocrático, mesmo contra os interesses do financiamento do respectivo partido. Porque nunca foi feitor de nenhum interesse, mesmo quando os papéis da verdade desapareciam dos arquivos do Estado. É preciso contar toda a história, em nome da verdade, da efectiva perseguição que sofreu, em nome das causas e dos compromissos com a verdade que sempre o marcaram. Um resistente, ternamente amargo, mas que foi capaz de ascender à mais humana das metafísicas, diante da noite que lhe dará eternidade.


Falemos de outros sítios, Jorge. Nos últimos dias de Outubro, lia o seguinte no teu blogue: "Depois de notícias inesperadas de fim noite, de uma vagas, mesmo vagas leituras de fim de noite, de uns quantos devaneios de absurdo silêncio pelas fraquezas da vida e pelos sortilégios de umas sirenes anónimas algures entre sinistros longínquos e para mim anónimos - curioso como um sinistro que não vemos é para nós um sinistro anónimo que não existe portanto - reencontro, lento, seguro, progressivo, com o alastrante silêncio da noite que nenhuma palavra derrota, nenhum som contamina, apenas um pombo aqui à entrada da janela do meu quarto vem perguntar de mim. Pisco-lhe o olho. Ele, impávido, fita-me. Nem uma inesperada migalha de pão parece ter força para afastar o olhar fito desta criatura do meu olhar fito no olhar fito nele. Ou será o breu que lhe furta a migalha? A noite, há-de, pois resolver. Ele não resistirá à migalha. Eu sei, é a natureza. Eu, sucumbirei a contra-gosto à força irresistível da pálpebra que quebra. Eu sei, é a natureza."


Imediatamente te fiz um comentário que, dessa, ficou solitário: Eu li, Jorge. E fui lá cima, à raiz do mais além. Obrigado.


Voltei a ler o teu último texto, da passada quarta-feira, um dos 7 904 postais que editaste: Não está escrito em lado nenhum que o biorritmo só cresce. Também desce. Hoje é o caso. Pronto. É questão de esperar. E recomeçar. Com a fotografia nova que recebi no telemóvel e que apaguei com o meu providencial jeito para as tecnologias. Vem outra a caminho, para a montanha russa recomeçar a subida até aos céus infinitos da eternidade.


Redigo para sempre: Eu li, Jorge. E fui lá cima, à raiz do mais além. Obrigado. O Jorge recomeça em cada um dos que nele acreditaram e confiaram. Eu sou um deles. E para sempre.