a Sobre o tempo que passa: Quisemos a democracia para nos livrarmos daquele despotismo a que chamaram ditadura das finanças

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.2.10

Quisemos a democracia para nos livrarmos daquele despotismo a que chamaram ditadura das finanças


Espreito as inconfidências de o Sol. Recordo a "comunicação à nação" de Teixeira dos Santos. Reparo que os heterónimos politiqueiros do actual primeiro-ministro minoritário podem ter planos para o controlo da informação e até chamarem, aos opositores, dissidentes e chatos não unidimensionalizáveis, os nomes de birra que ultrapassam o dicionário do bom senso. Não podem é condicionar o direito à indignação dos governados.

Um dos órgãos ou aparelhos de Estado pode reagir contra uma determinada situação política, usando o respectivo direito oficial à palavra, enquanto autoridade pública. Só se a quisessem derrubar a ordem estabelecida é que estaríamos diante de um golpe de Estado...mesmo que se vestisse de golpe de Estado constitucional.

Não se detectam esses sinais em Sócrates e na sua mão longa financeira. Ambos apenas manifestaram a compreensível birra de quem perdeu o privilégio da solidão absoluta. Daí terem que aceitar a não resignação da ocasional maioria parlamentar e o poder de clamor dos que preferem a liberdade de expressão e o dever de pensamento.

Não vejo sinais de pronunciamentos, levantamentos, insubordinações ou motins de um qualquer golpe de Estado constitucional, mas uma saudável resistência de outros órgãos do mesmo Estado, bem como o saudável activismo da comunidade política dos governados, pouco disponíveis para uma usurpação bonapartista da legitimidade estabelecida. Ainda bem!

Uma das características do Estado de Direito tem a ver com as sinuosidades impostas pelas regras do jogo quanto à feitura das leis. Incluindo as variadas manobras dilatórias de ministros, grupos parlamentares e presidente da república, coisa que o Sá Pinto não aguentava. Mas não parece que a "muita tranquilidade" de Paulo Bento leve a vitórias...

Já tivemos um governo que fez greve, mas não no período de constitucionalização pós-revolucionária. Agora, temos um ministro que anuncia, na véspera da aprovação de uma lei, que vai reagir contra ela, por todos os meios legais e políticos, numa pedagogia que pode levar a outras respostas de reacção dos cidadãos, dos seus grupos e de outras instituições, públicas, privadas ou mistas. Por outras palavras, está inaugurada uma nova fase política, a da resistência legal e política, comandada pelo governo contra o parlamento...

E, por cá, em mais um destes normais anormais, talvez importe recordar que quisemos a democracia para nos livrarmos daquele despotismo a que chamaram ditadura das finanças. Resta saber se há mais vida para além do endividamento...

Stéphanne Rials, desculpem-me o eruditismo, considera que o Estado é intrínsecamente crise, cabendo-lhe geri-las de modo dinâmico. Porque o dito é o lugar onde a sociedade se reflecte, se mediatiza, se pensa. Mesmo quando faz braço de ferro partidocrático, nesta forma de institucionalização dos conflitos que é a democracia...