Soletrando Tahrir, contra os manuais da concepção ferroviária da história
As correntes profundas que marcam as culturas e as identidades não são facilmente captáveis por desbaratadas séries hollywoodescas, ou por bandas desenhadas da missionologia fundamentalista. Mesmo quando assistimos ao efémero de uma pretensa imagem de revolução, transmitida em directo por canais globais de notícias.
O que parece pode não ser. Nem que para lá exportássemos Louçã defrontando camelos, Lacão organizando governos de transição, com Cavaco em forma de esfinge, Passos, como embaixador junto da Liga Árabe ou Sócrates, nomeado caixeiro viajante do turismo no Nilo.
Tem que desaguar muita água na foz do rio da memória, para que o berço da civilização retome a confiança dos novos polidos e civilizados. E parece inevitável que a religião volte à praça pública, como instrumento de moralidade social, ainda que se vista de irmandade e copie a moderação dos otomanos. Embora bem desejasse que fosse mais fulcral o papel dos jovens e das mulheres manifestantes.
Tenho pena que a velha Europa nada possa dizer da sua experiência. A velha senhora que, depois da Segunda Guerra Mundial, teve reconhecer que foi derrotada por certa geração de povos afro-asiáticos que foram episodicamente liderados por Nasser. Nós, que elevámos a guerra mundial uma velha guerra civil de imperialismos domésticos, pelo menos, já reconhecemos a nossa não superioridade face aos resultados desse pedaço de história, depois de 1945 e, sobretudo, no pós-Bandung.
E, neste contexto do Norte de África, até Portugal pode sublinhar que foi o primeiro na descolonização, quando abandonou Mazagão e a refundou no Amapá. Porque gastávamos energias demográficas demais numa conquista secular onde não produzimos nenhuma síntese nem nenhum mestiço, além das fortalezas. Tal como a França pode recordar que falhou estrondosamente o seu último investimento imperial, nomeadamente no impossível da Argélia francesa, dado que alguns desses resultados são os conflitos nos arredores de Paris, os que deram fama e proveito presidencial a Sarkozy.
O Ocidente europeu que passou desta falhada integração dos domínios, bem assimilacionistas e destribalizadora aos meros jogos de acordos pautais na associação à CEE, deixou aos norte-americanos o jogo do confronto de civilizações, através de uma exportação da democracia em enlatados de ficção ou de informação. Quando deveria regressar ao longo prazo civilizacional do velho, mas não antiquado, conceito de mar interior, o que unia as gentes do mesmo livro, sem a arrogância do falso desenvolvimentismo.
Aquele que marca as concepções ferroviárias da história, segundo as quais os povos que estão no pleonasmo do em vias de desenvolvimento, mesmo quando estão, segundo as estatísticas, em estações ditas mais atrasadas, não têm de uniformizar-se pelo mesmo pronto-a-vestir das concepções do mundo e da vida dos ferroviários ditos superiores que pensam já ter chegado ao fim da história.
O confronto entre as expectativas e as realizações nos chamados autoritarismos modernizadores, incluindo os que estavam comandados por quem foi aceite como activista da Internacional Socialista, não aguenta o conceito fácil das ditaduras com que, no dia seguinte a serem derrubadas, lhe atiram os anteriores aliados.
Continuo a não querer unidimensionalizar-me pelos erros dos manuais de transição para a democracia, emitidos pela república imperial, para controlo da não existente periferia. O mundo é mais esfera do que aquilo que parece nos planisférios da geopolítica colonizadora.
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