a Sobre o tempo que passa: Dez meditações pouco adequadas a vulgatas decretinas

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.1.11

Dez meditações pouco adequadas a vulgatas decretinas



1
Os merceeiros, os enjoados e os quixotes que nos enrascam não assumem que é possível subverter a realidade através da metalinguagem e das erráticas metáforas. Não compreendem esse quanto mais poético, mais real, cantado por Novalis.


2
A poesia sempre foi mais verdade, no sentido de mais filosófico, do que a história, como ensinava Aristóteles. Porque a via do transcendente sempre esteve mais situada nas circunstâncias do lugar e do tempo, do que as utopias e ucronias em que se enreda o pretenso cientismo, aquele que determina só existir aquilo que se pode medir, como as rígidas réguas dos paradigmas, sempre ultrapassáveis.


3
Quem procura manejar o lume da profecia, sem o fazer esvoaçar fora do lume da razão, vive sempre fora do tempo dominante, sobretudo quando procura conjugar o eterno, longe dos que se enredam no paralelograma de forças do passado, sem as necessárias saudades de futuro.


4
Não subscrevem aquele dito de Vieira, segundo o qual só há o verdadeiro fora do tempo. Ou melhor: fora daquilo que os donos do poder absoluto e da dita ciência certa decretam como suas verdades incontestáveis.


5
A realidade sempre foi subvertida pelas autonomias, quando estas assumem que, no princípio, tem de estar o fim, o tal dever-ser que é, das essências que apenas se realizam pelas existências, onde só por dentro das coisas, as coisas realmente são.


6
Todos os decretinos processadores, em nome da ideologia ou do vértice hierárquico, seja ministerialismo, sejam seus sucedâneos, directoristas, presidencialistas ou rectorísticos, temem os que praticam o pensar é dizer não, como dizia Alain. Ou que a revolta é bem mais fecunda que a revolução, como vai acrescentar Camus.


7
A essência do homem ocidental sempre foi o individual do indiviso, onde está a plena soberania, dita dignidade da pessoa humana. Ou como assinalava Unamuno, a essência do homem ocidental é o ser do contra.


8
Quem experimentou as garras do saneamento e do processamento da persiganga, com que os instalados tentam calar a justiça, não pode admitir que o rolo unidimensional do conformismo nos faça enjoar, sobretudo nesta praia da Europa que sempre foi partida para todas as sete partidas.


9
O sinal do nosso futuro continua a passar pela resistência individual e pelo pensamento crítico da liberdade. Mesmo quando se rejeitam as normalizações impostas pelos pretensos antidogmáticos neodogmáticos, como esses que, perante certo situacionismo, proclamam que têm o monopólio da contestação e assim nos desmobilizam.


10
Os bobos da demagogia, da tirania e da mentira podem alimentar-se desses irmãos-inimigos. Mas quem quiser continuar mesmo do contra tem que procurar o mais além e antecipar o tempo da revolta, voltando ao pensamento que se possa viver.