Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
3.2.11
Não consigo pensar que a Europa se desresponsabilize do que está a suceder no mundo árabe. Não se importam ou exportam ditaduras ou democracias sem que antes se inculquem no nosso entendimento a cultura dos povos. E nós falhámos no conhecimento desta forma de viver a vida.
Os Irmãos Muçulmanos estão atentos a tudo isto, estou certa. Serão quem vai dominar neste novo jogo árabe, tendo já permitido que os cavalos e os camelos atravessassem as barreiras com homens a bramirem paus, prontos a chacinar e a serem chacinados não por bombas, mas por mãos dos que lhes são iguais.
A Tunísia tinha passado a fazer parte da nossa descoberta anual. Cada ano sentíamos mais perto o compreender Cartago, o deserto de sal e o de estepe e o de areia e as casas dos trogloditas cheirando a menta quente e ainda os 4X4 a galgarem as dunas a velocidades vertiginosas e ainda assim as miragens não nos fugiam, antes existiam por total verdade.
A Tunísia também tinha a particularidade de ter uma chave gigante à porta do deserto. Ali mesmo onde à sombra faziam 51 graus, ali mesmo onde tirei uma fotografia com o menino-adolescente no caminho de um Jesus e, através da qual se vê mundo por contar e suavidades no agreste da secura, inimagináveis, inauditas. Alá!
E sempre recordei os oásis de tapetes voadores à distância de um beber e de uma surpresa indescritível, bem como os locais onde se filmaram cenas do filme “O paciente inglês”. E era tudo assim. As cavernas de pinturas misteriosas tal qual no filme surgiram.
Saudades do bonjour e do cous-cous. Saudades de um véu-manto azul de deserto que fazia bela a beleza de qualquer idade.
E as jóias berberes, as jóias nómadas até este texto ocidental as reclamar? E os cavalos num galope de escutar único, quando os cascos se enfrentavam na areia que os recebia?
E as bonecas das aldeias do Norte-Centro? Ali estavam em múltiplas cores de linhas e panos, e com os filhos amarrados igualmente por linhas junto ao estômago, como se saíssem as crianças directamente do coração.
E saíam directamente do coração. O parto era por ali, pois que por ali o amor.
Sempre que me despedia no jantar do até ao ano, vestia um traje local de uma elegância de casamento de Medina. E os homens e as mulheres ficavam orgulhosos do porte e cumprimentavam-me chamando-me étoile e eu respondia-lhes de meia vénia.
E nunca senti na Tunísia apenas descoberta. Também senti instabilidade e por vezes receio de nos atrevermos a visitar locais onde só o céu por protecção e tradutor se mostrava afável.
Nesses momentos nem os “yesmine” dos homens davam sossego, antes pergunta pelo pouco que afinal sabíamos do que nos rodeava.
Esta instabilidade também a atribui ao facto de nunca ver mulheres nos locais mais remotos que visitámos. Contudo, havia uma outra instabilidade profunda: refiro-me à pobreza e à fome e aos olhos turvos que nos reclamavam face à surda comunicação existente.
De um modo ou de outro, eles eram um tempo curto e nós neles, outro, da mesma dimensão.
Uma vez fomos durante um dia inteiro num carro com dois tunisinos que nos explicavam a razão do azeite e do açafrão desencadearem guerras.
Mostraram-nos locais únicos, como aquele onde a maior ânfora do mundo acabara de chegar e se encontrava a ser pousada numa espécie de rotunda, sendo ajudada por guindastes e muitos homens a deitarem mantas e tapetes no chão para que se não beliscasse nada da abençoada ânfora.
Foi uma chegada imperial testemunhada por nós e eu, meia escondida, à saída de uma casa de forno de barro, perguntava-me o porquê desta magnifica ânfora no caminho da nossa Tunísia-surpresa. Perguntava-me se me havia de mostrar descontraída ou se um ar semi-receoso me protegeria mais, naquele fim de mundo estranho de interpretar e ao qual – excluindo-me – só os homens tinham direito de presenciar.
Também nos explicaram os dois tunisinos a que me refiro, qual a razão que impedia que tirássemos fotografias para o lado das árvores da casa do presidente do país, ainda que de casa nada se vislumbrasse, e eis que de repente e saídos não sei de onde uns polícias mandam parar o carro numa estrada de pó e nada.
Julgo que só nesse momento nos demos conta da “importância” de sermos estrangeiros, pois que os tunisinos não tinham como explicar aos polícias que nós estávamos ali por vontade nossa.
E de repente desconhecia-se qualquer vontade. Qual o poder. Qual a sorte.
E hoje gostamos muito de ter tido a ousadia de termos ido naquela viagem como se fossemos tunisinos.
E hoje, pergunto-me se voltaremos a ver o levantar do Sol no deserto de sal, onde dantes era oceano.
Hoje a Tunísia da nossa surpresa é saudade e é um voto de sossego na vida das incompreensões da humanidade e é o profundo desejo de que o museu mais belo do mundo - o Museu do Bardo - se preserve para explicar aos nossos vindouros a razão que impediu a compreensão, o conhecimento das culturas, a falta de narizes nas estátuas do museu.
Este museu possui a colecção de mosaicos mais importantes de todo o mundo.
A maioria do século II ao IV e estão ordenados em secções dedicadas à história da Tunísia: às épocas gregas, cartaginesas, cristãs e islâmicas.
E Sidi Bou Said?
Pois é uma cor azul, uma cor de tempero na maravilha de um Mediterrâneo que só daquele local assume a tonalidade de uma terra-mar-mundo-prometido.
M. Teresa B. Vieira
3.02.11
Sec. XXI
<< Home