a Sobre o tempo que passa: <span style="font-family:georgia;color:red;">O governinho que nos cadaveriza</span>

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

21.11.04

O governinho que nos cadaveriza


Foto gentilmente cedida pela barraca de tiro ao alvo da Feira do Relógio

Ainda ontem disse ao jornal A Capital, sem falar em castelhano, que discordava de Mário Soares quando este comparava o actual momento político ao que precedeu o 28 de Maio de 1926, porque o então presidente do ministério, António Maria da Silva, era bem mais competente do que o actual, tal como havia, nesse gabinte, ministros com excelente qualidade, à excepção do paradigma do "vira-casacas", Vasco Borges.


António Maria, o infeliz bonzo, nunca se pedrizou

Com efeito, o último governo da I República, o 39º do 5 de Outubro e o 25º pós-sidonista, teve a oposição parlamentar de nacionalistas, monárquicos e canhotos, enquanto socialistas, católicos e alvaristas optaram pela chamada expectativa. Já então Silva, presidente do ministério e ministro do interior, proclamava: não sou da esquerda, nem da direita, sou do partido republicano. Na justiça, João Catanho de Meneses. Nas finanças, Armando Marques Guedes. Na guerra, o independente tenente-coronel José Esteves da Conceição Mascarenhas. Na marinha, outro independente, Comandante Fernando Augusto Pereira da Silva. Nos negócios estrangeiros, o futuro salazarista Vasco Borges. No comércio, Manuel Gaspar de Lemos. Nas colónias, o general Ernesto Maria Vieira da Rocha. Na instrução pública, Eduardo Ferreira dos Santos Silva. Na agricultura, António Alberto Torres Garcia.


Afonso fez como Durão, pisgou-se

Como então já desconfiava Afonso Costa: A raça dos sebastianistas e messiânicos tem pululado, de sorte que agora já alguns me quereriam para... ditador! Isto prova quanto está obliterado o culto e até o respeito pelos princípios. Só na pancadaria se confia com condição que caia somente sobre os outros.

Entretanto, o deputado Pinheiro Torres, que então não pertencia ao Padre João Seabra, embora pertencesse a águas com o mesmo mineral, era bem explícito: Nós não nos podemos afastar do grande movimento geral. O dilema que foi posto ao mundo é este: Ou o fascismo, não com a reacção que tem na Itália, mas com a reacção que está alastrando pela Europa, ou o bolchevismo. Se o fascismo triunfar, a civilização salva-se, se é o bolchevismo que triunfa, voltamos à barbárie, e as capitais serão incendiadas pelas guardas de Moscovo .


Fernando tinha de andar em flagrante de litro

Por seu lado, o coerente nacionalista liberal, Fernando Pessoa, numa observação que nenhum jornal de então transcreveu, registou: Quanto mais o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais risco há, se não positivamente mais certeza, de a estar prejudicando; mais risco há, se não mais certeza, de estar entrando em conflito com leis naturais, com leis fundamentais da vida, que, como ninguém as conhece, ninguém tem a certeza de não estar violando. E a violação de leis naturais tem sanções automáticas a que ninguém tem o poder de esquivar-se. Pretendendo corrigir a Natureza, pretendemos realmente substitui-la, o que é impossível e resulta no nosso próprio aniquilamento e do nosso esforço.


Sérgio searava

Já António Sérgio, na Seara Nova, elogiava a conferência do direitista Magalhães Colaço, proferida na Associação dos Advogados, No topo dos grandes caminhos, conservadores e radicais, observando que a definição dada pelo jovem professor quanto ao espírito conservador equivalia ao que o próprio Sérgio considera como espírito revolucionário. Aliás, o mesmo Sérgio dizia: o grande conservador Disraeli disse que o dever do homem de Estado é fazer por meios pacíficos (normais, legais) o que faria pelos violentos uma revolução. Alguns que chegaram à democracia pluralista quando tiveram imediatos de primeiro grau com Popper, depois de formatados pelo maoísmo, ainda não percorreram o velho e frustrado mestre da nossa teoria democrática e a coragem intelectual que sempre teve nas relações com os adversários. Foi saneado, mas nunca os saneou.


Raúl queria ser Alain, mas não havia indivíduos

Outro democrata seareiro, de marca pluralista e radical, Raúl Proença, já reconhecia: As câmaras são já como as antecâmaras das casas bancárias, e a política um meio de fazer fortuna. Quem entra na carreira começa por bramar contra a Finança, adere depois ao conservantismo, penitenciando-se das verduras da mocidade, e acaba por se introduzir na gerência dos bancos, como fruto da idade madura.


Espécie ministerial em flagrante de aquário

E não foi Mário Soares que, no dia 3 de Outubro de 1925, num artigo publicado na Época, intitulado Portugal tem que reagir para que não o assassinem, considerou que um lugar no Parlamento é para estes Catões, a garantia da gamela bem cheia, a fartura e o regabofe garantidos. O autor da frase chamava-se Gomes da Costa e viria a ser marechal.


São dezasseis vezes três num resultado que é igual a zero por causa do "spoil system"

O actual governinho parece-se mais com o V Governo Provisório de Vasco Gonçalves. Só que José Saramago não é o director do "Diário de Notícias". Vital Moreira já não é do PCP. Gomes Canotilho já não é o Joaquim Gomes da revista "Vértice". E podemos ler os gritos de alma de António Barreto, Vasco Pulido Valente, Eduardo Lourenço e José Pacheco Pereira. Embora haja os mesmos Marco António e Jorge Neto, as reflexões místicas de Paulo Teixeira Pinto e os notáveis artigos de Gonçalo Capitão e do Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia. O que nos vale é a circunstância de antigos ministros de Salazar e Marcello Caetano continuarem a ser os sustentadores intelectuais do presente modelo, trabalhando na alta burocracia, com adequadas prebendas e subsídios, para poderem continuar a sanear os inconvenientes e a trabalhar no revisionismo histórico da respectiva literatura de justificação, com mais êxito do que Vasco Borges.