a Sobre o tempo que passa: <span style="font-family:georgia;color:red;">Falta muita viagem por cumprir</span>

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

1.1.05

Falta muita viagem por cumprir



Pus-me a pesquisar na Internet sobre a antiga fortaleza de Gale, perto de Colombo, no Sri Lanka, quando me deparei com uma listagem de dezenas e dezenas de fortalezas deixadas naquela zona do Indíco pelos nossos antepassados, da autoria de Marco Ramerini. Procurando, assim, ir além da Taprobana, prefiro aqui registar o começo de um texto que emiti há, precisamente, cinco anos:

Mais de dois mil anos depois daquilo que convencionámos ser o nascimento de Jesus Cristo, um dos pontos de partida da era euro-mediterrânica, e mais de quinhentos anos depois da viagem de Cabral e Caminha, um dos principais impulsos da era euro-atlântica, importa proclamar que continuamos a não entrar no novo milénio, porque nos falta descobrir o caminho político para o Planeta. Já entendemos que a Terra é só uma, em termos de ambiente, mas ainda não percebemos que há também um só mundo em termos geo-históricos e geo-humanos, um só mundo que deve ser perspectivado como a terra dos homens, como corpo político, dotado de organização política e da ideia que serve a política: a racionalidade do justo.

Ainda não reparámos que em cada 100 homens há pouco mais de 10 europeus, quase 6 norte-americanos, também quase 6 da ex-URSS e menos que 9 sul-americanos, contra 22 chineses e 20 membros índicos, para pouco mais que 11 africanos, enquanto quatro quintos da riqueza mundial continua a caber a uma sétima parte da população do mundo. Ainda não assumimos que o homem, como cidadão do mundo, deve passar da aldeia global da comunicação à polis global, onde, para além da casa comum da economia e das finanças, com déspotas e donos, candidatos a senhores do mundo, porque apenas estão mobilizados pela racionalidade técnica da utilidade e da segurança, importa a comunhão do fenómeno político superior, em torno da racionalidade ética de um princípio de justiça e da união simbólica pelas coisas que se amam.

Utilizando a metáfora comemorativa, mais de dois mil anos depois, mesmo a nível mediterrânico, os seguidores de Cristo, ou do seu aparente inverso, o humanismo laico da matriz estóica e da modernidade iluminista, continuam com dificuldades de diálogo face aos seguidores de Maomé, de tal maneira que ambos ainda não conseguem navegar entre as margens daquele que foi o mar interior do mapa de Ptolomeu, esquecidos que estão dos manuais de Platão e Aristóteles, que os europeus redescobriram nos séculos XII e XIII, graças aos mesmos árabes. Quinhentos anos depois, o Atlântico, a que acedemos com a ajuda de pilotos também árabes e de cartas e técnicas de navegação trazidas do Mediterrâneo, ainda não consegue ser o oceano moreno, dado que não se empreendeu a viagem a caminho do Sul, com ligação ao Índico e passagem para o Pacífico.

Falta muita viagem por cumprir para atingirmos a armilar, esse cruzamento de paralelos e meridianos que nos ensina a circum-navegar e a fugir dos planisférios da abstracção. Com efeito, a globalização, como semente do universal, ainda não foi compreendida. Ainda não com-prendemos, dela, parte com parte, para chegarmos a conexões de sentido, de tal maneira que, do particular, possamos ter intuição da essência. A vertente económico-financeira da mesma globalização já descobriu que todos os habitantes do Planeta são produtores e consumidores, mas ainda não concluiu que esse não é o fim da história e que ainda não começou a viagem pela justiça na distribuição dos rendimentos.

Os ricos são cada vez menos e cada vez mais ricos. Os pobres, cada vez mais e cada vez mais pobres, agravando a revolução demográfica, com os ricos a terem cada vez menos filhos e os pobres no ritmo do “crescei e multiplicai-vos”, com a doçura dos “lírios do campo”. E não basta a hipocrisia da segurança e daquela ordem pela ordem que permite manter a Europa com dois terços de gente a viver cada vez melhor, graças à existência de quase um terço de socialmente excluídos, onde os maioritários, da nova classe média, votam sempre, muito mediocraticamente, nos mesmos partidos do centrão gestionário e situacionista, numa estabilidade garantida pela circunstância de, no resto do mundo, a maioria ser de excluídos. Política é segurança e bem-estar, mas não é apenas segurança e bem-estar, exigindo a superação dessa racionalidade técnica do mercado, pela ascensão à justiça da racionalidade ética, que constitui a estrela do norte do campo político.

Talvez os economistas ainda não tenham percebido que os problemas económicos, apesar de apenas se resolverem com medidas económicas, como ensina o FMI, não se resolvem apenas com medidas económicas, como ensina o bom senso. Porque se a economia (de oikos, casa em grego, de domus, casa em latim) é ponto de partida para a política, e não o contrário, também a globalização económica tem de ser entendida numa perspectiva armilar, como desafio que apenas pode ser vencido, quando se der regulação política àquilo que hoje já é um planeta unidimensional, em termos de comunicação e de sociedade da informação. No tocante ao Planeta, se já estamos na casa, falta sairmos desse doméstico e atingirmos a esfera pública, o político, onde tem de inventar-se algo que seja superior ao dono e nos dê a racionalidade do justo.