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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.1.05

Onde fica o exílio, jagunços nossos?



Os quatro meses de patética e quase anedótica governação santanista levaram ao paradoxo do ressurgimento salazarento. Com efeito, o regime de inconfidência de "jet set" que transformou São Bento num antro de "estórias", reais ou imaginadas, parecendo o exacto contrário da austeridade de pão preto do antigo sistema de segredo de Estado, geraram a actual esquizofrenia que leva Paulo Portas a assumir a imagem do pensador, do estratega e do sereno e competente defensor da pátria. Aliás, a política de imagem fez com que este, só pelo facto de despachar contratos de helicópetros, submarinos, carros de combate e radares, se tronasse no símbolo da competência almoçadeira, a que logo vieram prestar menagem serôdias sumidades de patética conformação.

O elemento mais marcante do salazarismo sempre foi a hipocrisia. Pior: o paradoxo de se fazer um discurso contra a hipocrisia a fim de se fazer ainda mais hipocrisia. Isto é, teorizando-se a necessidade da autenticidade, faz-se o exacto contrário do que se vai proclamando. E tudo se disfarça com as mãos papudas do salamaleque de salão, com a cadeirinha de coiro preto, sacanamente posta para o tolo do gabiru julgar que o assassinato pode ser gratificante. E tudo sempre na solenidade ritual de gabinetes grandiosos, onde a luz esguia dos candelabros, o óleo frio dos quadros épicos e o retorcido das escrivaninhas, nos parece transportar para a delícia cultural dos livros de carneira cheios de bicho, cheirando ao mofo dos inquisidores da treta.



O chefe supremo tem sempre as mãos higienicamente desinfectadas, porque ele apenas é mais um desses honestos que, infelizmente, tem que gerir uma plebe de intermediários desonestos, desde a bufaria dos serviçais que esperam ser promovidos, à minoria dos jagunços violentistas, numa rede que só é eficaz se o vértice continuar a parecer o exacto contrário daquilo que o conjunto é, na realidade. O nosso "yes, minister" não é apenas uma sátira para série humorística, dado que ele ainda transporta os punhais assassinos que nos violaram, nesses colossais edifícios de gigantescas colunas amedrontadoras, nesses longos átrios que poderiam servir para cadaverosas exéquias, onde ameaça sempre soprar o gélido vento da morte, enquanto neles vão desaguando os passos perdidos de labirínticos corredores que sempre nos fazem lembrar hospitais-prisões.



E nesse arquitectónico feito pelos engenheiros do absolutismo, a solidão do indivíduo, que resiste em suas crenças, quase se transforma em medos enregelantes. Sobretudo, em agrestes noites de invernia, quando as diluídas luzes de néon contrastam com as saudades do diurno e luminoso sol, dessa memória de força que nos vai despertando a vontade de fugirmos para bem longe desta prisão dos tempos cronometrados. Porque a liberdade e o movimento estão lá fora, rimam com rua, rimam com povo, com esse povo comprimido, que continuam a proibir em filas de autocarro, em ditaduras de relógios de ponto, de horas para entrar, de horas para sair, de horas para almoçar, segundo o ritmo da burocracia cinzenta, planificada, avaliadora. Por isso apetece peregrinar pelos exílios que podem ser e sempre estão à nossa espera.