Dia internacional da poesia...
Segunda-feira de um Março que, afinal, não é, hoje, um marçagão. O Instituto de Meteorologia alerta para a ocorrência de rajadas de vento, que poderão atingir os cem quilómetros horários, no Centro e Norte do País, enquanto uma conferência internacional sobre inteligência computacional começa hoje, em Coimbra, com a presença de 170 cientistas dos cinco continentes. Ficámos também a saber que o presumível assassino dos dois agentes da PSP, que morreram no domingo baleados no Bairro da Falagueira, Amadora, terá sido detido no Sul de Portugal. Já o programa do Governo está a ser apresentado e debatido na AR, no dia em que se ficou a saber que dois terços (64,3%) dos inquiridos de uma sondagem "Aximage/Correio da Manhã" acham que o novo Governo, liderado por José Sócrates, vai governar «razoavelmente», «bem» ou «muito bem». Entretanto, o idoso que na passada segunda-feira tentou matar, a tiro, no Tribunal de Portimão, um médico do Hospital do Barlavento, suicidou-se ontem.
Por tudo isto é que apetece recordar que fizeram de hoje o dia internacional da poesia, pelo que apetece repetir o que há tempos publiquei em livro:
Cada poeta deve ter a sua própria técnica para dizer o indizível. Uma voz que, nele, e através dele, possa exprimir o mais além da poesia. Essa inquietude que apetece, a tal voz que fala através de nós, o espaço da Graça que só Deus tem. Se, dia a dia, todos os dias, fores artesão da palavra, cinzelando os restos de versos, surgirão desses poemas sem querer, esse imprevisto de há muito procurado, essa fé que acontece por tanto termos rezado. E nesse procurar sem procurar chegar, poderás cumprir o projecto de sentir o pensamento, pensando teu próprio sentimento.
Há sempre a música imprevista de um verso novo assomando no postigo do momento e as canções por fazer que, no sossego da madrugada, se transformam em melodias inéditas e subjectivas.
Não, não sou essa fotografia de passe, postiçamente sorridente que bordeja meu nome carimbado. Até nem sei que íntima força me levou a escrever estes pretensos poemas que fui glosando, reescrevendo e divagando. Também não me confundo com esse rabisco de assinatura que movimenta a minha conta bancária. Nem com esses números todos de pagar impostos, de levantar dinheiro, todos postos nos muitos cartões de plástico, magnetizados, que fazem funcionar as caixas automáticas que anotam os meus passos. Esse colossal banco de dados do aqui e agora; onde o mercado usurpou a liberdade; e onde só me deixam referendar aquilo que me perguntam, muito controladamente. Porque me pretendo indiviso e livre, talvez seja mais do que o simples dígito de um recenseamento, esse registo, essa abstracção, que os destruidores da cidadania transformaram em número fiscal e cartão de eleitor, simples folha de um "dossier" qualquer na repartição tantos de tal. Sou, sobretudo, a revolta de ainda não ter lugar, de não caber no espaço rectangular de uma ficha profissional. Sou muito mais do que a simples consequência fingida de um encadeado curricular. Sou eu, apenas eu, este quem fui que há-de ser, mesmo depois de morrer.
Já não sei rezar sem racionalizar e nem sequer posso voltar ao colo de minha mãe. Na escola onde aprendi, sou agora professor, neste ter de ensinar, entre as coisas que aprendi, tantas coisas que não sei. Não, não posso voltar atrás, reperegrinando os passos que já esqueci, nem regressar ao passado que já não há. Tenho de sofrer meu estar aqui. Letrado e culto, feito doutor em tantas coisas que não sei, confesso ter lido montanhas de papel inanimado, bibliotecas inteiras de pensamento pensado. Aliás, de tanto colectar fichas e pés de página, fiquei mesmo sem saber bem o que sabia, sempre a duvidas daquilo que dizem que sei, desse título que a lei me dá. Porque aprendi palavras novas que arrumei no sistema de conceitos de uma qualquer teoria e, dos velhos signos, me esqueci. De tanto procurar quem sou, fiquei mesmo sem saber para onde vou. Pelo menos, aprendi a duvidar daquilo que dizem que sei.
Há uma força antiga, desmedida, que as forças que tenho não conseguem deter. Uma força que não tem tempo, que não tem fim, uma força que vai além de mim. Uma força excedente, transcendente, algo que me passa, trespassa e sobrepassa, mobilizando os ténues restos de quem sou. Não é tropismo, reflexo condicionado, automatismo. Uma força bem mais forte, bem mais funda. Tem a profundidade das coisas autênticas, das nascentes de argila. Tem a calma serena dos poentes e o tamanho da sombra das árvores centenárias. Uma força suave e perfumada, como o musgo nas pedras do jardim. A força de dizer sol, de dizer mar, de dizer pinhal. Do tempo sereno que me dá alento, deste sinal de voo que me ensina a navegar. Quando volto a cumprir o signo da gaivota peregrina e, seguindo uma rota para mim ignota, volto a poder esvoaçar. "Humano, demasiado humano", tão simples como o fluir das coisas, de quem sente o pensamento, de quem pensa o sentimento. A emoção de diluir-me no movimento, de seguir a brisa que me leva à raiz do vento.
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