Entre o Estado de Bem Estar do Senhor Feliz e o Estado de Mal Estar do Senhor Contente
A escolha popular do passado dia 20 de Fevereiro e o estilo do novo governo garantem um inequívoco estado de graça a Sampaio, Sócrates e Gama, bem como ao sistema político desta já envelhecida democracia da III República, bem apoiado pelos presentes aparelhos judicial, económico-financeiro, eclesial e mediático, com Marcelo Rebelo de Sousa na RTP, Olivedesportos na Lusomundo e os viscondes nas suas televisões e anexos editoriais. Até os senadores da República que não foram recrutados para ministros poderão continuar a entoar as respectivas músicas celestiais, entre jornais sobre a salvação do mundo, bancos para a salvação das massas e avaliações universitárias para nos livrarem de maçadas.
Aliás, todos poderão continuar a condecorar-se uns aos outros, seguindo essa ética herdada da II República, recondecorando comendadores de outrora e, todos felizes e todos contentes, poderão continuar a dar consultas, pareceres, avenças, reformas e paródias sobre o fluxo de subsídios gerados pelos impostos que carregam sobre os trabalhadores por conta de outrem, os tais que não podem beneficiar dos apoios de pessoas colectivas de utilidade pública.
O restante país, que é o país, entre este novo senhor feliz e este velho senhor contente, parece já estar disposto a veranear, a dar um gigantesco sim à constituição europeia, a tratar de jardinagem, a polir o carrinho e a esperar pelo próximo anúncio de saldos dos hipermercados, satisfeitos com a possibilidade de um novo negócio no ramo dos medicamentos de venda livre. O nosso velho Estado Novo, dito "Welfare State", ainda tem suficientes jóias da coroa para evitar que se entre no rodopio do "Warfare State", até porque sempre podemos privatizar as praias ou vender em lotes o novo espaço de acrescentamento da zona económica exclusiva, semeada por Nuno Fernandes Thomaz. Aliás, não é de descartar a hipótese de haver petróleo no Beato. E enquanto o pau vai e vem, de Bruxelas para Washington, folgarão as costas da engenharia financeira, com muitos honestos a gerirem corruptos e outros tantos corruptos a gerirem honestos, em regime de alterne.
Enquanto isto, para quem não perceber o logro de dois terços de remediados, sempre maiores do que um terço de excluídos, lá poderemos ler as epístolas aos pobres emitidas pelo espírito de Porto Alegre, através de Boaventura Sousa Santos e José Saramago, deliciar-nos com os ditirambos de revolução quarentona à Louçã, ou experimentar os novos produtos de rebeldia enlatada das produções Mandala. Consta que estão na calha infindáveis séries da "Contra-Informação" e que este espaço de meditação transcendental irá ser alargado através de telejornais diários do "Inimigo Público", numa frente comum com o "Gato Fedorento", as "Noites da Má Língua" e a "Quinta das Celebridades". Ao que parece, serão comentadores residentes muitos líderes políticos que se demitiram depois de derrotas eleitorais.
Resta saber o que acontecerá quando o estado de graça e as altas expectativas deste gigante de entusiasmo que até corre a Maratona se volverem em desencanto e frustração, diluindo-se nos pés de lama em que o fizemos assentar? Será que só então descobriremos que as presentes boas intenções sistémicas não assentavam nas necessárias boas ideias nem tinham suficientes raízes na opinião pública, na sociedade civil e no civismo participativo?
Será que só então perceberemos que o unanimismo ideológico, além de ser mau conselheiro. é revelador de uma cobardia massificada e fruto de um longo desinvestimento nas autonomias individuais? Porque países com a nossa dimensão e até com infra-estruturas axiológicas próximas conseguiram resistir e crescer, para cima e para dentro, de forma sustentada, adoptando o conceito originário da "new frontier", que sempre foi ir além dos limites, na procura do paraíso. Porque o tal varar as fronteiras que o irlandês Kennedy tornou em slogan sempre foi a americanização do nosso bandeirante, dessa procura de um "far west" que nos desse o mar sem fim.
Importa voltar a querer, não uma ilha sem lugar, onde é provável o afundamento sem regresso, nem o menos mau da empregomania e do salve-se quem puder, mas o aqui e agora da subversão pela justiça, num transcendente situado nas circunstâncias do tempo e do lugar. Naquilo que Jacques Maritain qualificava como um ideal histórico concreto, onde, em vez do castelhano Dom Quixote, a lutar contra os moinhos de vento, haja um Zé Sancho Pança, ou João Semana, a semear para colher, sem ter que ser confiscado por um sistema quase ladrão, que continua a isentar os privilegiados que têm "lobby" e a permitir a evasão fiscal, sem um programa consequente de luta contra a corrupção e o indiferentismo cívico. O presente Estado dito de Bem-Estar é mero manto diáfano de fraseologia discursiva que recobre a verdade nua e crua da injustiça. Cudado com o evitável estado de mal-estar!
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