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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.3.05

Nos cem anos do mestre



Sou capaz de reivindicar, para a minha escola e para os meus textos científicos e pedagógicos, meia dúzia de consolidadas fontes de inspiração e algumas permanências de invocações e de dizer muito simplesmente que uma das principais, até como paradigma de intervenção, é um tal francês Raymond Aron. Mas hoje, já quase no fim da noite, quando vivemos os últimos minutos do dia do centenário deste mestre e quando reparo que sou como tal reconhecido na Rússia, não quero contribuir para a ilustre galeria dos homenageadores lusitanos de tal professor e jornalista de ideias. Tenho para aí uns restos de sites, onde se demonstra a coisa e qualquer consulta à net, nos lugares de Portugal, é capaz de demonstrar que talvez possa reclamar a categoria de discípulo de tal homem livre. E até sou professor da escola portuguesa onde o mesmo autor exerceu a respectiva missão, mas como estou em sabática e a dita anda noutros locais da respectiva rosa dos ventos à procura da ideia de obra, prefiro calar sobre todos esses meandros.


Raymond Claude Ferdinand Aron. Autor francês, de origens judaicas. Doutorado em filosofia em 1935, é um dos introdutores em França dos teóricos daquilo que chama sociologia alemã . Reage contra a dominante positivista, sendo, sobretudo, inspirado por Max Weber. Criador de um certo modelo francês de ciência política, atinge uma fundamental síntese entre a preocupação neoclássica da teoria política e o sociologismo. Utilizando o saber clássico e a metodologia das ciências sociais modernas, mais à maneira da sociologia compreensiva de Weber, do que do neo-empirismo anglo-saxónico, Aron defende a autonomia da política, como uma organização do comando e da obediência. Considerado um conservador liberal, tem um passado de resistente. Teórico do gaullismo, manteve sempre a respectiva independência mental. Crítico demolidor do marxismo sartriano, considerado como o ópio dos intelectuais, assume-se como jornalista de ideias, principalmente a partir das colunas de "Le Figaro".

Do jurista e sociólogo alemão retém, sobretudo, a ideia de compreensão, bem como o projecto da construção do tipo ideal que, como Weber refere, não é obtido pela generalização, mas pela racionalização utópica permitindo racionalizar o irracional. Porque os factos sociais tal como os construímos no ponto de partida referem-se a intencionalidades conscientes, e são, por consequência, factos significativos que diferem das realidades percebidas no ponto de partida das ciências da natureza. Falando num subsistema político dentro do sistema social, considera que este, apesar de dotado de autonomia, não está separado dos outros sectores do conjunto social. É que as lutas e os acontecimentos no subsistema político não aparecem como reflexo ou simples consequência das lutas e dos acontecimentos do conjunto social ou do sistema económico-social.

O agregado político, influenciado por todos os outros subsistemas, ... tem as suas próprias leis de funcionamento e de desenvolvimento, e, por sua vez, influencia todos os outros, porque é através dele que são tomadas as decisões que visam alcançar os objectivos da colectividade no seu todo. Para além desta defesa da autonomia e do primado da política, Aron é um dos grandes teorizadores do pluralismo, quando concebe que a democracia moderna, tem na sua realidade efectiva, poderá ser caracterizada pela institucionalização dos conflitos.

A compreensão, como salienta Raymond Aron, não é uma capacidade misteriosa do espírito de se confundir, por assim dizer, com outro espírito, de se projectar por um acto de intuição divinatória nos sentimentos de um outro. A metodologia da investigação submete-se às regras do rigor e da prova em todas as disciplinas que se pretendem científicas.

Considera que é possível um estudo lógico-experimental de condutas não lógicas, utilizando as categorias paretianas. Neste sentido, salienta que a deontologia de uma actividade científica se traduz nas seguintes regras:

1.Não podemos seleccionar arbitrariamente os elementos da realidade e não os devemos deformar.

2.Não podemos seleccionar arbitrariamente as palavras nem as suas definições.

3.Não podemos apresentar, como certos ou precisos, fenómenos cuja própria natureza exclui geralmente a precisão

4.Não podemos determinar arbitrariamente o que é importante ou essencial.

5.Temos de respeitar a liberdade de discussão e de crítica, excluindo os argumentos de autoridade e a retórica de intimidação, dos que pretendem esquivar-se ao debate, tentando desqualificar uma interpretação sem a refutar

6.Devemos praticar o bom uso dos juízos de valor, afastando os que exprimem simples preferências que apenas estão na esfera da opinião

A ciência está sempre inacabada. Assim, observa que la science moderne est, par essence, en devenir, elle ignore les propositions relatives au sens ultime des choses, elle tend vers un but situé à l'infini et renouvelle sans cesse les questions posées à la nature.

Considera que a ciência política, pelo menos implicitamente, contém apreciações relativamente aos valores que professam os autores que a mesma estuda. Não é possível compreender autenticamente o sentido de uma conduta política sem incluir nesta compreensão e distinções de valores. Porque um agregado torna-se político quando se opõe a outros agregados do mesmo tempo e quando possui, relativamente aos seus membros, uma unidade de inteligência e de acção. Mas dizer primado da política, isto é, reconhecer que modo de exercício da autoridade, o modo de designação dos chefes, contribui, mais do que qualque outra instituição para moldar o estilo das relações entre os indivíduos, não significa o determinismo do maurrasiano politique d'abord. Significa tão só reconhecer a existência de uma influência dominante no conjunto social: influenciado por todos os outros subsistemas, o subsistema político tem as suas leis próprias de desenvolvimento e, por seu lado, influencia todos os outros, dado que é através dele que são tomadas as decisões que visam conseguir os objectivos da colectividade considerada como um todo.

Observa que on a la puissance de faire une chose et on exerce le pouvoir de la faire. Isto é, a puissance, tal como a potestas, é o potencial de comando, de influência ou constrangimento que um indivíduo possui relativamente a outros, enquanto o pouvoir, ou a potentia, é a passagem a acto da puissance, ou da potestas. A primeira pode ter-se, a segunda apenas pode exercer-se.
Estado total e Estado limitado


Ora, quem trata de política sente, por vezes uma espécie de complexo de inferioridade face a outras ciências sociais, como , por exemplo, a matematizável economia pura, e trata de assumir-se como "científico" à imagem e semelhança das ciências da natureza.

No fundo, como que está a atribuir um carácter de ciência subdesenvolvida à ciência que não é ciência dita exacta.Está a esquecer que o teórico se pode, no princípio, ser hipotético-dedutivo, acaba, como conclusão, por pisar os terrenos da grande interrogação da teoria contemplativa.
Basta que tenha necessidade de integrar os fenómenos que não se repetem, que são os acontecimentos da história, produzidos pelos seres que não se repetem, que são os homens, no todo da existência humana.Porque, como dizia Pascal, "o homem supera infinitamente o homem".Porque não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história.Porque o normal é haver anormais...

Aliás, Aron, acaba por concluir, quanto à teoria das relações internacionais , que, no fim do itinerário, o "conjunto" levou-o , contrariamente ao que pensava no começo, à "determinação do sistema inter-estadual" e à "prudência do homem de Estado", passando pela "análise das regularidades sociológicas e das singularidades históricas", o que "constitui o equivalente crítico ou interrogativo de uma filosofia". Isto é, ele que quis começar por ser cientista de uma teoria cientista, acabou por ser cientista de uma teoria contemplativa.

São estas as minudências epistemológicas que me interessam salientar no dia de hoje. A melhor homenagem que lhe posso prestar é tratar do eterno que ele nos transmitiu e continuar a corrente. Sem esquecer que a respectiva morte ocorreu pouco depois de ele ir a tribunal defender o seu amigo Bertrand de Jouvenel, acusado que era de passado fascista. E o judeu não-sionista e nacionalista francês, resistente e democrata, como sempre o foi Aron, cumpriu op dever de honra. Aron, presente!