Pela teoria consensualista democrática! Vivam as crianças!
Um dos mais notáveis e fundamentados blogueiros neo-conservadores deste universo decidiu, muito justamente, e bem, zurzir-me, por causa da minha postura sobre a interrupção voluntária da gravidez. E elaborou, sobre a questão, um notável artigo, onde o único erro que cometeu foi dizer que eu escrevi um artigo sobre a matéria. Apenas quero salientar que não publiquei artigo nenhum sobre o aborto, apenas declarei o seguinte: "Julgo que, a nível do Estado e da lei penal, não podemos ficar dependentes de tais concepções do mundo e da vida" (do padre Serras Pereira). De outra maneira, não tardará que aqueles que pisam os terrenos da heresia possam ser relaxados para o braço secular. A Deus o que é de Deus, a César o que é César e nem aos agentes de Deus nem aos de César pode pertencer tudo! Ainda não voltámos a Bizâncio...". Mas concordo que perfilho a "teoria consensualista democrática que assola o nosso país" e que continuo liberal, isto é, a lutar contra o absolutismo, incluindo o democrático, mas sem esquecer o teocrático. Por isso, votei, no referendo, a favor da aproximação da nossa legislação aos modelos suecos, britânicos, austríacos e de outras barbáries europeias e ocidentais. Porque "Ubi dubium, ibi libertas".
Não vou argumentar teologicamente, invocando escritos de muitos católicos e professores de teologia católica que adoptam a minha postura. Não citarei retroactivamente as teorias de São Tomás de Aquino sobre a matéria da "hominização tardia" ou a concepção de espermatzóide que o cientificismo ainda tinha no século XIX. Tal como seria estúpido chamar a atenção para o secular caminho que levou à luta das mulheres pelo direito à igualdade, contra aqueles que as consideraram como "res impudica". Digo apenas que seria melhor estudarmos as causas que levam os nossos serviços públicos de saúde a não aplicarem a lei vigente sobre a interrupção voluntária da gravidez, da mesma maneira como o fazem os espanhóis.
Os religiosos não têm o monopólio da moral. Os moralistas não podem invocar dogmaticamente certos fragmentos científicos e difundi-los de forma terrorista. Direi que, sobre a matéria, a humanidade inteira está numa encruzilhada que não pode ser resolvida por polícias, tribunais e cadeias, mas por todos, incluindo filósofos, teólogos, cientistas, juristas, politólogos e homens e mulheres comuns. É um problema de cultura, não é um problema de biologia. Porque ser pessoa é algo que o homem acrescentou à natureza quando superou o animal que tem dentro de si e descobriu o infinito.
Não sou relativista, acredito que somos um transcendente situado. E digo que a esfera pública não pode invadir o espaço da minha autonomia, desde que entenda a mesma autonomia como um implacável espaço de regras próprias. Apenas defendo que a utilização de métodos contraceptivos e a decisão moral sobre a interrupção voluntária da gravidez, no espaço de tempo que as leis das "nações polidas, cristãs e civilizadas" consensualizaram, devem pertencer à ciência dos actos do homem enquanto indivíduo e não à heteronomia estadual.
Com isto, não me atirem para o campo dos abortadeiros que, algumas vezes, parecem mais interessados na defesa dos linces, aranhas e lobos do que na defesa do bicho homem, principalmente num país como o nosso que se vai suicidando por não colocar a defesa do direito à vida como a prioridade das prioridades. Mas será que reparamos na hipocrisia de não haver tanta quebra demográfica por causa da gravidez das adolescentes? Será que efectivamente defendemos a maternidade?
O desastre demográfico que se avizinha devia ter outra resposta. E não vale a pena inventarmos o que já está inventado, nem descobrirmos o que já está descoberto. Copiemos imediatamente leis e sistemas de apoio, já consagrados no Canadá, na Suécia e na Noruega, visando o pagamento estadual a mães, pais, avós ou até empregados que queiram utilizar a casa de família para o apoio às crianças e não digamos que estamos a repetir o "Deus, Pátria, Família" do salazarismo, insinuando que o papel das mulheres é o "K, K, K" de má memória (crianças, cozinha e igreja). Se efectivamente fossem perseguidas e condenadas todas as mulheres que, entre nós, praticam o aborto clandestino, o que o Estado gastaria em tal internato prisional serviria para sustentar esse subsídio e muito mais. E que tal o nosso Estado apoiar os tratamentos contra a infertilidade, da mesma maneira como subsidia os antidepressivos?
Não, não sou relativista. Apenas julgo que as leis, sobretudo as leis criminais, têm que optar por valores, hierarquizando-os, comunitariamente. E qualquer observador das práticas sociais pode concluir que, nestes domínios, vale mais a profilaxia do que a terapêutica, isto é, vale mais prevenir do que remediar. Ora, quando assistimos ao colossal desastre da sangria de um povo, há que ter a coragem de inverter o discurso e assumir as grandes conquistas da luta pela liberdade, consagradas depois do século XVIII e das grandes revoluções evitadas como foram as liberais. As tais grandes conquistas que deceparam teocracias e inquisições, que aboliram a escravatura, que consolidaram a soberania popular, o pluralismo, a tolerância, a liberdade religiosa e a igualdade de oportunidades, nomeadamente a da mulher e do homem. Que o século XXI possa ser o século da criança!
Apenas acrescento: se a direita lusitana se restringir ao duvidoso conceito de hominização do feto que, neste momento, é adoptado pelo Vaticano e que não me vincula, porque não sou católico, que tal direita fique no seu lugar. Quem está mal, muda-se! Há muitas outras direitas e muitos outros lugares desta Europa e deste Ocidente que me deixam lá ter espaço de combate pelo meu conceito de direito à vida.
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