João Paulo II e o ritmo do velho tempo novo
O quinto papa da minha existência que, durante vinte e sete anos, marcou o ritmo do mundo e de cada um dos homens concretos que cultivam a memória, João como João XXIII, Paulo, como Paulo VI, despediu-se do efémero tempo dos vivos e atingiu a dimensão da eternidade às 20 horas e 37 minutos do dia 2 de Abril de 2005, no primeiro sábado mariano do mês de Maio. Com ele, vivemos o fim da cortina de ferro e da guerra fria, acompanhando a integração dos antigos satélites da URSS na União Europeia, nomeadamente a sua Polónia natal. Com ele, entrámos no contraditório da globalização, voltando ao ritmo de velho tempo novo, marcado pelo regresso da história, da inquietude e da esperança.
É o homem de sempre, o homem de futuro, pleno de passado e ávido de presente, que voltou a subscrever o universalismo pela diferença, bem expresso pelo espírito de Assis, assim estilhaçando o hegeliano confronto entre o reaccionário e o progressista, entre o tradicionalista e o modernizador. Daí que caiam na lama da vulgaridade, essas análises politicamente correctas dos que o alcunham como "um dos papas mais conservadores do último século" que "tomou posições fortemente controversas", para utilizarmos as judiciosas palavras do nosso querido e inquisitorial Bloco de Esquerda, ou dos que, como Mário Soares, muito canhestramente, vêm denunciar o "conservadorismo teológico" de quem não terá assistido às charlas reaccionariamente progressistas com que o nosso antigo presidente se vê ao espelho da vaidade.
João Paulo II merecia bem mais do que as estreitas e baças lentes das perguntas feitas, num inquérito de hoje, pelo jornal francês "Le Parisien, onde se revela que 53 por cento quer um Papa "mais progressista", 27 por cento, um sucessor que "prolongue" a acção de Karol Wojtyla e cerca de 13 por cento, um Papa "mais tradicional", ao mesmo tempo que cerca de 40 por cento afirma que o Papa era "aberto ao mundo", enquanto 26 por cento o considera "conservador", 20 por cento "tradicional" e nove por cento "inovador".
Tais adjectivos não conseguem capatar as divergências e convergências que a emergência deste homem comum, feito representante de um sonho de mais além, nestas encruzilhadas do nosso tempo. Ele é apenas um clássico anti-modernista, anti-reaccionário e anti-progressista que não cabe nos chavões do politicamente correcto. Ainda bem que, ao defender a democracia e ao denunciar o capitalismo sem ética, manteve o paradoxo de uma concepção do mundo e da vida que não se reduz ao binário que o tenta dizer "progressista" no plano social, mas "tradicionalista" e "conservador" no plano moral, social e pessoal. Ainda bem que o papa da Igreja-Espectáculo foi dono de uma sabedoria humanista, capaz de fazer com que um excelso homem de pensamento passasse a coerente homem de acção. Viveu como pensou.
Saúdo que tenha posto fim aos preconceitos que muitos católicos mantinham face a judeus, budistas e islâmicos. Noto o proteccionismo que gerou face ao Opus Dei e à Comunhão e Libertação. A rigidez, relativamente aos problemas do sexo ou da igualdade da mulher, dentro da Igreja. Lamento que não tenha sido possível uma mais íntima ligação entre católicos e ortodoxos, ou que não se tenha acelerado a comunhão ecuménica com os protestantes. Mas compreendo que o choque destas novidades tenha levado a desadequações face a certas igrejas nacionais, onde, muitas vezes, teve católicos, e pastores, bem menos papistas do que o próprio Papa em tolerância, especialmente nos lugares onde, em vez de judeus, há maçons.
Revejo imagens das suas visitas a Portugal, ao Brasil, a Angola e a Timor. Leio os sinais que emitiu sobre Fátima, mas continuo a considerá-los como um mistério, talvez por não saber lidar com o sobrenatural. E de nada me queixo, porque, não sendo soldado desse povo de Deus, não tenho que criticar por dentro, o que vejo, de perto, mas de fora, como simples homem de boa vontade.
O homem da resistência anti-nazi e anti-comunista, acabou por ser o belo papa que se tornou inconveniente para a direita e para a esquerda, o tal tradicionalista que nunca foi bem visto pelos neo-conservadores, o tal libertador que nunca foi compreendido pelos neo-liberais. Aquele que, aliás, nunca foi captado por aqueles pretensos progressistas cristãos dos anos sessenta do século XX que bem queriam um papa com mais hesitações luteranas do que com convicções católicas. Aquele que, contudo, conseguiu assumir por dentro as profundidades da chamada teologia da libertação, evitando que ela se diluísse numa estreita teologia da revolução, perdendo-se no maniqueísmo marxiano.
Como outrora escrevi: com João Paulo II não acabou, de vez, o pragmatismo da razão de Estado vaticana, que, se não se filia directamente no maquiavelismo, nem por isso deixa de fomentar a necessidade de alguns meios justificarem certos altos fins. Se o maquiavelismo é a mistura de força com manha, o vaticanismo nunca deixou de recorrer à manha, tendo em vista a propagação da fé, embora sem poder recorrer à força. E não há dúvida que a diplomacia da Santa Sé tem muitas vezes escrito direito por linhas tortas.
Se o antigo pastor da diocese dos campos de concentração, filho de uma pátria experimentada em ocupações, não teve que receber lições de resistência de teóricos de café, soube, de experiência vivida, que os caminhos da libertação, na maior parte das vezes, não passavam pelos palcos do espectáculo ou pelo exercício de sinais ostensivos de verbalismo, mesmo que executados em homílias de altar. Mas os relatos jornalísticos apenas puderam captar a parte visível do "iceberg" e nunca seriam capazes de entender o alcance das sementes de esperança que o Papa da libertação lançou nas consciências.
Talvez tenhamos, entretanto, que aprender que as lutas de resistência só têm essa dimensão quando são capazes de levar as causas aparentemente perdidas até vitória, depois de muitas derrotas em inúmeras batalhas. Mas importa dar a César o que é de César e ao Papa o que é da Igreja, pelo que não pode ser o sucessor de Pedro a substituir-se aos homens no combate político. Os velhos manuais católicos de resistência que, na senda de S. Tomás, foram fundamentalmente aperfeiçoados pela escolástica peninsular dos jesuítas dos séculos XVI e XVII, ensinam que onde falta a força se deve refinar a manha, mas sem nunca perder-se a fé.
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