a Sobre o tempo que passa: Do Kumba de lá aos kumbas de cá, entre o descalabro e o défice

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

18.5.05

Do Kumba de lá aos kumbas de cá, entre o descalabro e o défice



Julgo não fazer parte daquele clubo eurocêntrico que trata do balanta Kumba como um ser excêntrico, só passível de emergência à beira Geba. Quando o derrubado presidente veio, em conferência de imprensa, invocar o Supremo Tribunal guineense para reclamar ano e meio de cumprimento do respectivo mandato presidencial, ei-lo que tenta uma nova espécie de golpe de Estado juridicista, através de uma adequada manipulação quase teológica. A intervenção deste ex-futebolista e ex-titulado da Universidade Católica Portuguesa apenas nos deve servir para repararmos como a democracia pode ser aprisionada pelas teias de certos seminaristas jurídicos, quando estes fazendo más cópias de certos constitucionalistas, tentam dizer que o Estado é um monopólio dos juristas.

Com efeito, a rede estadual, através da sua articulada hierarquia e da sua tentacular cobertura relativamente à sociedade pode ficar dependente de um certo conceito de educação jurídica marcadamente positivista e jusconceitualista que rejeita a hipótese de a lei estar dependente do direito e de o direito estar dependente da justiça.

Também entre nós, o chamado milagre da multiplicação das escolas de direito que acompanhou o desabrochar da democracia. Uma multiplicação que foi acelerada pela sucessiva elevação à potência das revisões constitucionais e das codificações, sem que tal fosse acompanhado pela multiplicação da qualidade dos aparelhos burocráticos e judiciais, encarregados da aplicação das regras.

Poderei até dizer que uma das causas do défice lusitano tem a ver com esses intermediadores da palavra estadual, com essa elefantíase legiferante que nos vai entrelaçando entre as várias séries do "Diário da República" e dos jornais oficiais de Bruxelas. Com todas essas mãos longas e verborreicas que nos vão amarfanhando, dado que perderam o sentido dos gestos.

Gerou-se assim a sombra de um dicionário alienígena que, pouco a pouco, transformou a política numa rede de novos poderes, altamente hierarquizados, entre os que podem oferecer melhores favores e os que ficam condenados a ter que esperar na longa fila dos homens comuns.

Kumba apenas é um bom exemplo desta reprodução caricatural em plagas africanas. Mas não podemos sequer sorrir com os novos contornos deste mostrengo estadual, dado que ele quotidianamente nos incomoda...