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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.6.05

Esta grande Lisboa pode ser um pequeno Brasil, mas sem favelas...



No dia do rescaldo de todas as escaramuças patrióticas que comemoraram a justa de São Mamede, desde o arrastão de Carcavelos aos confrontos de Guimarães e do Largo Camões, os portugueses começam a remoer os efeitos das notícias sobre acumuladores, acumulações e outras baterias, mas têm obrigação de sorrir perante esta fotografia dos medalhados da poeira do tempo que já é velho e relho, com que encimo este postal. Porque, depois dos ministros das finanças e das obras públicas e do próprio presidente, conforme a denúncia do "Expresso", consta que a lista, já sem turbo-professores, entrará nos meandros da verdade.

E desta não poderão escapar os próprios vendedores de sentenças opinativas, incluindo os chamadas psicopatas sentenciadores e todos os que continuam o velho regime absolutista, segundo o qual o príncipe está solto da lei ("princeps a legibus solutus") que ele próprio edita através da opinião, dado pensar que também é lei tudo o que príncipe diz ("quod princeps placuit, legis habet vigorem"), mesmo que seja um bocejo ou o habitual prognóstico feito depois do jogo ter acabado, dado que outros até se esquecem o que o mesmo príncipe, já olvidado de suas maneiras, tinha dito um quarto de hora antes do tal jogo ter começado, porque "un quart d'heure avant sa mort, il était encore vivant".



Proponho que a lei seja efectivamente igual para todos. Para a gente fina de Cascais e para a malta da Damaia, para os que vivem no Intendente ou nos condomínios da classe A e B, cujos habitantes militam no SOS Racismo. Proponho que chamemos os bois pelos nomes, isto é, que acabem com todos os acumuladores, incluindo aqueles que tiveram direito a vencimento acumulativo dado em resolução do conselho de ministros de um anterior governo PS, depois de já acumularem a pensão de deputado e de professor, para além do subsídio de curadoria, em fundação que costuma escolher um patriarca por partido, para, depois, organizar colóquios sobre a moralidade dos partidos ao cheiro da canela e das patacas, mesmo que seja o tlin-tlin das "slotmachines".

E continuando a chamar os bois pelos nomes, importa que não insinuemos que foram jovens negros, de origem africana que fizeram o arrastão de Carcavelos, porque quem defendeu os incautos banhistas também foram polícias maduros e negros, de origem africana. A questão não está no subentendido racista, porque os putos da Damaia não são de Bissau, de Luanda ou do Maputo, são portugueses bem portugueses deste Portugal, educados pela televisão portuguesa, pela escola portuguesa, pelos jornais portugueses, pelos políticos portugueses e que constituem uma excelente demonstração como estamos a falhar como povo, incapaz de gerar uma comunidade de coisas que se amam, uma comunidade de significações partilhadas.



Os higiénicos ocultadores do termo raça, que é coisa que cientificamente não existe, como demonstra qualquer universidade ou investigador sérios, não são capazes de reconhecer que a culpa é de nós todos, desse falso paternalismo da memória colonial e imperial que, confundindo o bem com o mal, não é capaz de compreender que, com fantasmas de guerra colonial e preconceitos de descolonização, o racismo é uma fogueira que vai lavrando sem se ver, um primitivismo naturalístico que disfarça a nossa impotência de criação comunitária. Uma pátria que não reconhece que é bem mais rica porque, hoje, há mais portugueses a falar crioulo do que madeirense ou açoriano, mas que continua a não admitir o óbvio de sermos, pelo menos na grande Lisboa, um pequeno Brasil, é uma pátria transformada num cadáver adiado, só porque não repara que, para continuarmos a viver, temos que lutar pela reinvenção de uma identidade nacional capaz de mobilizar os pretinhos portugueses da Cova da Moura, a que só dão, felizmente, o futebol, do Benfica à selecção nacional, e algumas pitadinhas de Sara Tavares.



Não é esse o meu Portugal. O meu Portugal não pode ter esta mentalidade de criação de favelas que por aí circula entre os que continuam com programas escolares e de televisão que nos pintam de caras pálidas, burguesas e fidalgotas. O meu Portugal não é o da educação multicultural irrealista, mas dos novos muitos Portugais que me enriquecem e que eu não tenho que integrar em unidimensionalismo, mas na variedade dos muitos crioulos que fizeram Lisboas, Alcáceres, Messejanas e muitas outras aldeias de variedade universal. Por isso exijo que os polícias estabeleçam a ordem, que os tribunais cumpram a sua missão e que as televisões mostrem que os criminosos que por aí andam são de todas as cores, de todas as classes sociais, de todos os bairros. Sejamos claros, a preto e branco, a loiro e a moreno. Não decepem o Portugal maior que ainda podemos reidentificar e amar!



Os primitivos actuais são naturalisticamente racistas. Só o deixam de ser quando se conhecem, quando se amam, quando, através de um esforço de conversão, se elevam ao ardor de um sonho. Cá por mim, continuo a sonhar um Portugal cadinho de universal e até sou capaz de propor que o crioulo seja elevado a língua nacional portuguesa, ao lado do mirandês e do barranquenho. Saibamos ser dignos do Brasil que transportámos para a ex-capital do Império, mas não deixemos que cresçam as favelas da ignorância e da falta de transparência noticiosa. Só quem assumir uma identidade nacional aberta e reinventar todos os dias um sonho actualista de nação é que vale a pena, se a alma não for pequena! Obrigado, Sofia, a chinesinha que nasceu na minha rua e que anda sempre com o cozinheiro do restaurante indiano, a brincar com o pretinho Jaquim e com a Maria, moldova, seus vizinhos, neste belo quadro de um Portugal que pode voltar a ser abraço armilar! Os polícias são necessários, mas não são os polícias sozinhos que fazem as pátrias!