a Sobre o tempo que passa: Para um gonçalvista, a democracia não era compatível com a plena liberdade política

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

12.6.05

Para um gonçalvista, a democracia não era compatível com a plena liberdade política



Para uma análise objectiva do gonçalvismo, basta consultarmos as cerca de quinhentas páginas dos "Discursos, conferências de imprensa, entrevistas de Vasco Gonçalves", editadas por Augusto Paulo da Gama, com um esclarecedor prefácio do meu antigo professor de finanças públicas, José Joaquim Teixeira Ribeiro, o vice-primeiro ministro do patético V Governo Provisório que, por acaso, no actual portal do governo, está trocado com o VI, pondo Pinheiro de Azevedo em lugar de Vasco Gonçalves.

Com efeito, o meu querido professor, reitor da Universidade de Coimbra com o 25 de Abril de 1974, e digo-o sem qualquer sarcasmo, disse, sem peias do gonçalvismo o seguinte: "a democracia, como se sabe, não é compatível com a plena liberdade política. Não o é a democracia formal, pois não pode consentir em actividades ou movimentos antidemocráticos que a ponham em perigo. Mas ainda menos compatível com a plena liberdade política é a democracia socialista, uma vez que não pode consentir nem em movimentos antidemocráticos, como a democracia formal, nem em movimentos anti-socialistas que ponham em risco a construção do socialismo".

Julgo que esta confissão é manifesta do que tentou ser o marxismo-gonçalvista lusitano: uma ditadura visando o que julgava ser os amanhãs que cantam. Até porque, continuando a citar Teixeira Ribeiro, "uma revolução...não pode ficar parada, tem de avançar ou recuar". Felizmente que a fizemos recuar, exigindo-lhe que respeitasse os resultados eleitorais de 25 de Abril de 1975.

Gonçalves, agora dito idealista por Vital Moreira, quando ambos eram, na altura consequentes adeptos do materialismo dialéctico e serviam, muito patrioticamente, o bloco soviético, em plena guerra fria, não foi, felizmente o nosso Trotski, o nosso Lenine, ou o nosso Fidel, teve, pelo menos a vantagem de, graças aos respectivos erros, permitir que, rapidamente e sem a força da guerra civil, lancetássemos o tumor do pré-totalitarismo que ensaiava.

Ao que consta, até Teixeira Ribeiro acabou por abandonar essas ilusões de aceleração revolucionária, tal como antes tinha abandonado os entusiasmos que tinha manifestado pelo fascismo mussoliniano, quando nos anos trinta editava as suas "Lições de Direito Corporativo". Aliás, se aceito que Vasco possa ter sido boa pessoa, não duvido da grandeza moral de Teixeira Ribeiro, homem bom e grande professor, de quem guardo excelentes recordações, mesmo em confronto ideológico. Mas o que não me impede de sublinhar os erros ideológicos e as tragédias a que nos poderiam conduzir as ideias que professava. Por isso, continuarei sempre a proclamar: revolução, nunca mais! Nem que seja uma revolução ao contrário!

Os escritos vasquistas não passam de uma série de banalidades de "agitprop", revelando, contudo, o perigo que ele representava, quando apelava para a "vigilância popular" de um pidismo vermelho e neo-inquisitorial, pleno de cláusulas gerais que inventavam adversários que, rapidamente, qualificava como uma "minoria de criminosos", "um bando de salteadores", porque "os nossos verdadeiros inimigos são a reacção e os fascistas", com vivas às "massas trabalhadoras" e às "forças progressistas". São também interessantes as inúmeras entrevistas dadas a jornalistas soviéticos, jugoslavos, húngaros e romenos.

A melhor prova do falhanço do gonçalvismo foi a nobreza e a tolerância com que os anti-revolucionários da democracia pluralista, ocidental e burguesa, vencedora do 25 de Novembro de 1975, o trataram. Deixaram-no tão à solta que o balão de demagogia que representava se esvaziou quase de um dia para o outro. Até os cunhalistas não lhe dedicaram adequada hagiografia.