a Sobre o tempo que passa: Leitura de férias I. Contra a rotina, a estupidez e a incultura!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.7.05

Leitura de férias I. Contra a rotina, a estupidez e a incultura!



Fernando Pessoa por Luís Badosa, imagem picada em
pwp.netcabo.pt/netmendo/

Pertenço à raça dos navegadores e dos criadores de impérios. A falar como sou, não serei entendido, porque não tenho Portugueses que me escutem

Fernando Pessoa, um irregular do transepto, não escreveu para que o lêssemos, mas para que o representássemos, para que o tornássemos presente dentro de nós e, com ele, entrássemos em desassossego, nesse drama de vivermos entre os sonos de não conseguirmos dormir e o mistério de morrermos. Ele sempre esteve em contacto com os Altos Mestres sem passar pelas Ordens, até porque a vida iniciática é uma vida e não uma doutrina.

Teve que se escrever porque foi renunciando à vida. Nem sequer quis amar, pelo amor de uma mulher.

Sou um individualista absoluto, um homem livre e um liberal. E isto faz que tenha uma perfeita tolerância pelas ideias dos outros, que seja incapaz de considerar um crime o pensar outro do modo que não penso...

Começou, politicamente, como um iconoclasta antimonárquicos e morreu anti-salazarista para, nesse espaço intermediário, ser sempre do contra, salvo na ilusão do presidente-rei, muito especialmente depois de o terem assassinado, e com o nascente 28 de Maio, antes da salazarização do processo. Assim, observava que Salazar tinha "inteligência monocórdica" e "cultura unilateral", que seria do "tipo humanística, mas sem ser literária". Logo, Salazar, desumanizado, não passaria de "um cadáver emotivo", dado faltar-le "a imaginação e o entusiasmo", assistindo-se à "cesarização de um contabilista". Porque não seria "um estadista", mas um "arrumador. Para ele o país não se compõe de homens, mas de gavetas". Aliás, "uma doutrina pode ter uma força. Uma força não pode ter uma doutrina". Denunciando a "venda a retalho da alma portuguesa".

Os rituais exigem que se tenha fé neles antes que se possa começar a compreendê-los...

Neo-pagão e anti-católico, foi republicanos durante a monarquia, monárquico com a república e liberal em plena ditadura. Isto é, cumpriu a missão do homem livre. Foi sempre do contra. Até foi contra si mesmo, quando decidiu ir-se suicidando em absinto.

Contra a Rotina, a Estupidez e a Incultura...

O que de mais notável conseguiu realizar foi assumir-se como um marginal, num país que, décadas depois, o irá hipocritamente divinizar.

O papel individual é destruir; o papel social é construir.

Resta homenagearmos silenciosamente outros Pessoas que continuam a passear-se, incógnitos, pela Rua dos Douradores, mas sem poderem encher arcas com poemas por fazer. Quantos Pessoas não haverá que nem sequer tentam cumprir quem na verdade são.

O bem e o mal estão no psiquismo do crente, não na crença.

O maior erro é colocarmos o Pessoa na gaiola dos poetas consagrados, reduzido à dimensão de uma selecta literária. É não assumirmos o drama de quem andou sempre em sua própria procura, sem conseguir achar-se.

Ser liberal é ser crente na existência, de origem divina, da alma humana, e da inviolabilidade da sua consciência, em si mesma e em suas manifestações.