Leituras de férias II. A longo prazo nem todos estamos mortos
Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, &208)
Recordo os postais que aqui lancei há dias, sob o nome de "confissões metapolíticas", feitas nos tempos do guterrismo, para que alguns reparem que tentei sempre pensar o que sempre pensei. E que sempre gostei que comigo entrassem em contradita, pelas ideias que tenho e manifesto e não pelos fantasmas que alguns dizem que tenho, só porque não penso aquilo que convém, quando penso aquilo que tenho o dever de pensar, mesmo quando o professo em contra-corrente. Mas não me amedrontam os adjectivos diabolizantes dos pequenos inquisidores que caçam nas névoas dos bruxedos.
A razão é a fé no que se pode compreender sem fé
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, &175)
Penso o que tenho o dever de pensar e cumpre-me dar testemunho, mesmo que corra o risco de estar em minoria. Porque ter coragem é não contabilizar a opinião quantitativa e não procurar saber de que lado sopra o vento.
Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, &213)
Os que julgam ter razão no curto prazo podem perdê-la no médio e longo prazos. No plano das ideias não é verdade que, a longo prazo, estejamos todos os mortos.
Os homens de acção são escravos involuntários dos homens de entendimento
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, &163)
Há muitos que se sentem meros seres de encruzilhada, desses que, assumindo os desafios, vivem a aventura de não renunciarem a assumir-se como vagamundos que querem cumprir as rotas e os princípios. Dos que sentem poder ir além das teias e algemas que nos enredam. A noite estrelada e branda ainda nos pode assinalar novos caminhos de esperança. Diante de quem somos, há sempre novos espaços por cumprir que as nossas mãos livres podem semear.
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, &324)
Uma hora de caminhada pelas ruas planas deste lugar com mar ao fundo e o sol nascendo. A passarada vai acordando as ruas vazios e há notícias que me chegam pelos auriculares do telemóvel. Apenas respiro fundo diante da beleza da manhã e a força deste silêncio. Caminhando, sem dizer nada, assim me vou escrevendo, mesmo antes de sentir a liberdade da caneta, diante do café da manhã. O tempo não está para filosofices e politiquices, mas para sentir os pormenores da paisagem.
Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, &348)
Apenas apetece, muito simplesmente, continuar feliz e poder olhar os outros, olhos nos olhos, sem o calculismo dos que se fingem parecenças.
O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiper-excitação
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, &175)
Sinto saudade de mar. Das pequenas ondas do bem tempo. Da limpeza da areia. Dos longos passeios na maré baixa, falésia a falésia, assim diante de quem sou.
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