a Sobre o tempo que passa: Leituras de férias III. Pensar é resistir...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.7.05

Leituras de férias III. Pensar é resistir...



Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar


(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, & 102)

Em Portugal, dizer decadência é verificarmos como a imagem do grande intelectual, do consagrado professor ou do homem de insigne cultura depende, quase sempre da forma como se conseguem alcançar as alavancas da hierarquia burocrática, através de uma adeuada gestão estratégica da imagem. Com efeito, a maioria dos propagadores da falsa excelência não passa de uma pequena casta de impotentes que se alimenta de hipocrisia.

Há na base das elites uma classe inferior entorpecida, indiferente ou essencialmente recalcitrante

(George Steiner)


O nosso politicamente correcto no plano cultural é presa fácil de um conquistador que queira assumir-se como conselheiro de príncipe e que consiga pela falta de vergonha, de coerência e de autenticidade, subir os degraus que o façam chegar a homem de Corte, mesmo que, por dentro, não passe de um bobo da mesma.



O intelectual, aquele que é inebriado pelas ideias é, como o artista e o filósofo, embora em grau menos, alguém que nasceu - e não que foi feito... Ele não tem outra escolha, a não ser a de ser ele mesmo ou a de se trair

(George Steiner)

Pensar é resistir, é ter a coragem de sermos minoria, assumindo a atitude daquele que, para estar de acordo consigo mesmo, tem, por vezes, que estar em desacordo com todos os outros, não para "épater le bourgeois", mas para servir a comunidade, mesmo que a comunidade o não reconheça no seu próprio tempo de vida.



A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe é ainda pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, & 102)

Sabe bem podermos subir ao nível das discussões filosóficas assentes na mera observação quotidiana, sem qualquer pretensiosismo de academia ou de salão, nesse falar assente na reflectida experiência do bom senso. Talvez o fundamento da moral seja a coerência. Talvez o fundamento da sociabilidade seja a igualdade. E a melhor plataforma de identidade talvez assente em gestos de ternura. Quando a corrente que bilateralmente nos enlaça procura apetecer que tudo seja para sempre.



Sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, & 102)

Entre o que vou sentindo e o intelectualismo disfarçado em emoção, que se expressa na obsidiante viagem pessoana, acaba por existir um profundo contraste. Estou bem longe da sensibilidade de "Orpheu" ou do automatismo da "Ode Marítima". Sinto-me do partido da "Presença" e da "Távola Redonda", desse lirismo lusitano, onde o "humor merancórico" vira saudade e pode ser temperado pela força da esperança e pela vivência do amor, por essa maré viva que nos deixa longa a praia mar e por onde podemos peregrinar em longos passeios, todos os dias.