a Sobre o tempo que passa: Há um pedaço de Portugal que está sofrendo...não somos apenas autárquicas nem katrinas...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.9.05

Há um pedaço de Portugal que está sofrendo...não somos apenas autárquicas nem katrinas...



Cheguei e logo fiz a pedestre peregrinação pelas minhas recordações açorianas. A velha pensão onde tive a ilusão de um caminho que nunca cheguei a percorrer, a euforia do porto, a placidez do mar em volta e a ilha que conheço, profunda, enquanto me foi chegando o micaelense das conversas desta gente antiga. E lá vou olhando ao longe o que então procurei em sonho. E lá vou sentindo o vazio de já não poder chegar.

Não dizer nada, deixar que o tempo sossegue a inquietude, que a bruma se desfaça à luz do sol, que o sonho reverdeça os ramos decepados, que um tronco em flor nos dê alento. Pode haver tanta vida à nossa beira, tantos dias de beleza, de mãos dadas. Pode haver um tempo de pureza, um rio de fogo galgando as águas e uma casa de silêncios para ocupar. Pode haver quem somos, pode haver mar, à beira da lava negra e da pedra que esmaga o grão. Mesmo aqui, onde as nuvens, a terra e o mar se confundem, no branco cinzento do mau tempo, entre gaivotas, barcos e telas, neste leve chumbo de fundo azul.



Suspenso, sorvendo o mar, tenho o prazer de olhar e sentir filetes de abrótea, ananás, queijadas, licor de maracujá, numa tasca da Relva, em mesa comprida, com queijo e pão à discrição. Onde todos nos sentimos companheiros, comendo do mesmo pão, sentados à mesma mesa, assim no centro da própria tribo, na raiz deste pilar de pedra que, no Atlântico, se sustenta, onde o fogo se fez terra e o vento nos trouxe sementes. Há sempre mar no fundo dos quintais, a pedra negra das umbreiras, a erva verde, a porta de ferro, os torrões de magma, cor de ferro e as ondas balouçando em vaivém, dentro de nós. Há sempre um porto que é porta do ser aberta a todo o mundo...

E sempre este meu escrever-me para não sentir o peso do tédio, para tornar mais leve a dor de estar aqui. A ilha verde, o mar sem fim e sempre a espera pelas novas de além, neste sítio do centro do mundo, onde nos chegam passagens de muitas viagens. O mar, o verde, o sulfuroso das caldeiras e a pequenez das coisas humanas face à imensidão do cosmos. A bruma, o som do mar bem perto, o fundo da ventania e os pequenos nadas de uma carícia, de um gesto de ternura.