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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.9.05

Tudo o que seja perturbar a falsa ordem instalada me fascina



Sou um puro e duro neto de campónios que, na cidade, educado e vivido, assume a sua nostálgica identidade rural. Porque lhe foi dado aprender e apreender o sentido das árvores, o correr das ribeiras, a breve leveza dos pássaros e a fragilidade das flores silvestres.

Também trago comigo o agreste das brisas, o plural desnível das colinas e a variedade de um valado verdejante, onde a suavidade aparente daquilo a que, à distância, chamam paisagem, esconde alguns pedregulhos, certos silvados e a microscópica vida intensa de biológicos e minúsculos seres. Sobretudo daqueles que, dia a dia, escavam pedaços de húmus passado, à procura de sementes de futuro.



Por trás desta máscara, feita mãos de escrever, esconde-se o desalinho de um ser feito revolta, pleno da fúria de viver, que tem as mãos calejadas pelas cordas que teve de subir a pulso, e as unhas negras de tanta terra que foi amassando, para moldar em barro a sua própria estátua de sonho.

Não tenho a vaga fé dos nostálgicos que procuram o regresso da magia, nem a messiânica, ou angélica, crendice e ânsia por cumprir dos que esperam um qualquer encontro, iniciático ou profano, que lhes dê a automática aparição do transcendente.

"Humano, demasiado humano", assento meus pés nus no lodo e nas vísceras do quotidiano pecado, pleno daquelas tentações e pulsões que me varam e me penetram. Mas também não deixo de procurar olhar as estrelas, as noites de luar ou de, em pleno dia, ousar sentir de frente a violência solar. "Humano, demasiado humano", não passo de um pedaço da minha própria história, tanto da pessoal como da colectiva, ambas imaginadas pela experiência.



E aqui estou nesta viagem onde reaprendo a navegar nas ondas de um mar interior. Nessa conversão a um signo maior de um tempo que tem de ser. Na plenitude que é diluir-nos em todos os outros. Que a matéria não deve andar antes do mestre. Que a imaginação tem de conquistar o poder. Que temos de libertar-nos das dogmáticas tenazes que nos alcunham. Porque são precisos diálogos transversais que correspondam à pluralidade de pertenças de cada indivíduo. Porque devemos criar movimentos e não cristalizar-nos em instituições que perderam o sentido. Que urge o sonho de fundar uma qualquer coisa mais autêntica.

Porque há que procurar a intuição divinatória e a imaginação criadora como métodos científicos. Principalmente quando somos lógicos demais em nossas metodologias e tendemos para o exagero da classificação conceitual e do sistémico, esquecendo que o lume dessa razão deve ser compensado pelo lume dos afectos e da própria profecia.



Às vezes, não apetece até ler coisas difíceis, da dogmática de manual. Apetece procurar o absoluto no doce devagar do sentimento, sem a dor de me fechar germanicamente nas brumas e névoas da abstracção e da engenharia do rigor epistemológico.

Tudo o que seja perturbar a falsa ordem instalada me fascina, dado que estou farto das habilidades políticas a que dão o nome de reformas. E porque o desejo de certo centro, mole e difuso, ao matar qualquer espécie de palavra mobilizadora, é completamente totalitário, dado que silencia o pensamento. Sobretudo quando ele é invocado pelo aparelhismo desse lui que continua a dizer que "l'État c'est moi" e que nós somos o resto provinciano a educar...