a Sobre o tempo que passa: Doze glosas voegelinianas, aqui e agora

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.11.05

Doze glosas voegelinianas, aqui e agora



1. A verdadeira ciência da política, vestida com o hábito de certa ciência política, foi usurpada pelas ideologias do cientismo que, afinal, são uma continuação da gnose. Porque transformaram a política num adjectivo e a ciência num simples método ideológico. E tudo aconteceu porque o mundo do pensamento perdeu o sentido dos gestos; porque a política deixou de ser procura do melhor regime e deixou de enraizar-se numa paideia. O pensamento passou a ser literatura de justificação da ordem estabelecida (posita in civitate), perdeu o norte da justiça e a raiz da pátria. Perdeu o universalismo e perdeu a tradição.

2. A verdadeira ordem é a ordem justa. E os conceitos analíticos da ciência da política só o serão se ela voltar a ser ciência da polis, ciência dos actos do homem enquanto cidadão. Diversa da ciência dos actos do homem enquanto membro da casa (economia) e da ciência dos actos do homem enquanto indivíduo (moral).

3. Importa retomar o núcleo duro da ciência da política, essa raiz que é a chave da abóbada. O alfa que é o ómega da procura do pensar a política. Porque no princípio estão os princípios, aquela procura da felicidade que é ir além da autarquia e procurar a boa sociedade. Uma polis suficientemente grande para gerar governabilidade e suficientemente pequena para permitir a cidadania/participação. Para conciliar o poder e a liberdade, a comunidade e o amor. Numa polis que continua a ser pequena demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida (Daniel Bell) e onde o Estado está acima do cidadão, mas o homem está acima do Estado (Fernando Pessoa).



4. Política, direito e economia são parcelas de uma mesma ciência da ordem, de uma mesma ciência arquitectónica. Onde a procura da verdadeira ordem impõe que se vá além da mera ordem da conjuntura.

5. Existe o perigo das elites espiritualmente imaturas, sem rigor espiritual e sem disciplina analítica. Onde a doxa veste o hábito da episteme. Porque o hábito não faz o monge e o palavrar demagógico salta para fora da polis.

6. A verdade só vem dos que aprenderam a pensar pela conversão interior, de forma racional e justa. Porque se eu disser ordem posso pensar no mero ordinalismo autoritário da ordem externa, da ordem pela ordem, do mero equilíbrio mecânico de um "status", de um situacionismo que nos dê segurança sem justiça, como o salus populi levitânico, da razão de Estado ou do desenvolvimentismo. Logo, a terapia da procura da ordem implica a abertura amorosa da alma ao fundamento da sua ordem que está no além. Contra o modelo decretino das grandes ideias em sistema

7 Há que denunciar o domínio da ciência da política pelo método empírico-analítico de um sociologismo neopositivista, justificado pelas ilusões da hiperinformação contemporânea. Há que recusar as proibições do perguntar, esse fechamento contra a ratio. Que equivale a uma desordem. Porque a ditadura dos perguntadores apenas nos permite a ratificação plebiscitária



8. Há que ser contra a ideia do homem como operário em construção, dessa ilusão de um homem novo contra o homem de sempre, nesse desfazer o mistério do transcendente, decretando-se uma ideologia segundo a qual o homem solitário pode ser maître et seigneur de la nature

9 Política não é ciência da casa (oikos nomos). Até inventámos a polis para deixarmos de ter um dono, um dominus ou um oikos despote. Há que repudiar o regresso ao doméstico.

10 Há que rejeitar o método da pirâmide conceitual que nos faz engenheiros de definições e conceitos supra-infra-ordenados, dependentes do conceito matriz.

11. Há que denunciar a redução da razão ao estreito racionalismo, essa impostura intelectual da não-essência e da não-sabedoria. Porque a consequência é uma ideia de revolução do processo histórico. Dos amanhãs que cantam. Das vanguardas. Da intelligentzia. Onde a linguagem pode ser filosófica, mas não a sua substância e não a sua intenção.

12. Também consideramos que os três subsolos filosóficos no século XIX:

Comte
Marx
Nietzsche

produziram as sete principais ideologias no século XX

Progressismo
Positivismo
Marxismo
Psicanálise
Comunismo
Fascismo
Nazismo

Todas geraram movimentos de massas de elites, porque os intelectuais podem ser massificados, nessa identificação entre gnósticos e revolucionários.