Prefiro a plenitude do combate ao cinzento da cobardia
Passei alguns dias a peregrinar pelo mistério da polis, viajando pelos meandros daquelas comunicações íntimas com as profundas correntes do pensamento, onde as ideias não têm tempo nem sequer direitos de autor e até nos sentimos humildes discípulos e servidores de uma continuidade neo-clássica da política, entendida à maneira greco-romana, quase como uma religião secular.
Nenhum desses papagaios das vulgatas gnósticas que por aí pululam no pensamento dominante, das modas que passam de moda, e que, de vez em quando, têm a ilusão de nos comandar, só porque pensam ser o pensamento único de uma pretensa elite que arroga no monopólio da inteligência, é capaz de assumir a humildade de se reconhecer como simples servidor da ideia plurissecular de democracia, respublica, regnum ou Estado de Direito.
As ideologias que enclausuraram o século XX, e que ainda nos prendem, talvez não passem de operações massificadas por intelectuários que colheram as sementeiras filosóficas do século XIX, nesse jogo do longo prazo em que se traduz a política. Porque o chamado progresso, enquanto aumento quantitativo da cultura, não assentou em sólidas e profundas raízes civilizacionais.
Os acontecimentos de encruzilhada que nos marcam, neste dealbar do século XXI, são assim meras consequências de um paralelograma de forças ideológicas passadas e dos respectivos subsolos filosóficos. Importa, pois, ir além daquela espuma dos acontecimentos que marca o ritmo da hiperinformação desta aldeia global que, hora a hora, nos traz notícias em forma de relato pretensamente histórico, conforme o ritmo dos telejornais. Importa viajar nos meandros dos sistemas de ideias que já não pensadas por ninguém e nas teias da pirâmide conceitual das ideologias, para podermos atingir o subsolo de pensamento onde radicam.
De qualquer maneira, a consciência da crise política que vamos vivendo leva alguns a voltar a ter a ilusão da ideia geométrica de reforma do sistema político, como se fosse possível passarmos de mero corpo político a estruturado organismo político sem ser em nome de uma ideia de política, em nome da racionalidade e da virtude da justiça. Daí cairmos em certo desespero, a que damos os nomes de revolução ou de tradição, com o qual procuramos regenerar o corpo decadente, rejeitando o tempo perdido e procurando a pureza primitiva que nos fundou, sempre em torno do nosso próprio eixo.
Sabemos, de pensamento pensado, que qualquer sistema degenera, quando esquece a ideia original que lhe deu empresa, esse impulso genético donde se veio e para onde se tende. Logo, qualquer reforma, longe de ser movimento pelo movimento, tem que relembrar a ideia matriz e procurar o mais além que nos deu raiz.
Quando um sistema esquece os princípios que lhe deram princípio todo o esforço de mudança se pode perder nos meandros decadentistas da rotina, onde os que desesperam podem superar os que ainda têm esperança.
De outro modo, podemos cair no vício positivista do rebaixamento dos fins da polis se apenas elaborarmos doutrinas de um dever-ser pensado no simples acaso de uma conjuntura. Porque, se confundirmos o transcendente com um mero politicamente correcto da simples encruzilhada, corremos o risco de transformarmos o além num mero articulado, embalado no papel de fantasia da abstracção codificante, ao estilo dos constitucionalistas que comentam as crises quotidianas nesta teledemocracia, enredada nas teias conceituais hierarquistas de certa engenharia de seita.
E quando, para compensarmos a secura da hermenêutica constitucionalista, recorremos aos filósofos de pacotilha, como são os importadores de ideias exóticas que servem de agentes colonizadores, porque maus estrangeirados, podemos padecer daqueles habituais engasgamentos que mandam o patego olhar para o balão de certo provincianismo mental que nos endogamiza. O mais que nos pode acontecer é continuarmos a alimentar a bolsa dos “best sellers” das ideias enlatadas, onde abundam os que dizem mal de nós mesmos só porque se destribalizaram, nessa habitual cedência ao pacovismo da ilusória modernidade que nos faz traduzir em calão arrabaldes de Paris, Londres ou Washington.
Detesto essa modernidade empacotada do dever-ser que regista, no cúbico concentrado de uma ideologia, todos os sinais dos pretensos amanhãs que cantam, explicando os recentes motins de Paris com os mesmos argumentos com que analisam a ascensão ao poder de Bush, da guerra do Iraque ou do Holocausto. Daí que, neste portuguesíssimo dealbar do século XXI, todas as discussões doutrinárias entre a direita e a esquerda se façam entre antigos marxistas-leninistas-estalinistas-maoístas, desde os neo-liberais de pacotilha, que nos vendem doutrina social católica, aos neo-socialistas ditos utópicos, que cantam a ecologia ou lutam contra a globalização.
Acontece até que algumas destas sumidades se assumem como o paradigma do académico, não faltando os que apenas pintam de autenticidade meros fantoches em delírios semoventes, nomeadamente os que, sentados no coiros dos subsídios, continuam a invocar a respectiva estrada de Damasco, numas quaisquer férias universitárias onde encontraram a luz que os fez afastar dos antros apodrecidos de uma juventude extremista. Desses pretensos monopolizadores do politicamente correcto só porque depois se transformaram em transportadores da pasta de dois ou três manitus, em regime de carência afectiva de discípulos. Porque continuam por aí a circular dois ou três vermes gerontocráticos cuja falta de autenticidade tanto os levou a fazer discursos institucionalistas, quando as instituições que lideravam lhes serviam de instrumento para a personalização do poder, como logo a seguir procuraram despedaçar a boneca e quando passaram para o adversário, onde vislumbraram a continuidade frondosa do respectivo eucaliptal, feita de muitas chorosas viúvas da revolução frustrada.
E nesta terra de cegos, eles continuam a despedaçar bonecas institucionais, apenas porque lhes deram agendas carregadas de teclas donde podem premir a obtenção rápida do elogio ou do subsídio, neste regime de mão estendida e de bailados de corte, onde muitos dobram a espinha. Porque o pior da falta de autenticidade é o modelo do psicopata sentenciador e oracular que, vestindo o hábito do pensador, apenas transforma a falsidade na roupagem vocabular do falso mestre-escola. O que, variando de norte e de discipulagem, apenas se notabiliza por trair os ingénuos crentes, dado que não consegue assentar em qualquer profunda corrente do pensamento.
Por mim, prefiro continuar nesta encruzilhada de resistência, neste individual prazer de preferir a renúncia à cedência, dizendo “não, não vou por aí”. Prefiro a plenitude do combate ao cinzento da cobardia.
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