Hoje é o dia de cada um ter que dizer, uma vez por ano, o que, sem ter que ser, deveria ser dito todos os dias do ano
Hoje é um dia que é o dia, um dia de frio, um dia de paz, um dia cinzento de nuvens e molhado pela chuva miudinha, quando apetecia acordar com a plenitude do sol a dar-me luz e a inundar-me de alegria.
Hoje é o dia em que tenho saudades do arroz-doce de minha avó velhinha, segundo a receita das freiras de Santa Clara. É o dia em que apetece desconstruir as teias que nos dão um bem plastificado, com luzinhas de loja dos trezentos e pequenos sons de campainhas digitais “made in China”. Hoje é o dia que manhã vamos esquecer, quando rasparmos o papel de fantasia com que embrulhámos nossas prendinhas, depois de termos demonstrado perante a menina da caixa registadora a validade do nosso cartão de crédito.
Hoje é o dia em que chegou a noite do menino-Deus, mesmo para quem não acredita em Deus, como se quem acreditasse fosse superior aos outros, e vice-versa, que vem a dar no mesmo. Até porque muita gente que diz não acreditar é mais activamente crente que os ditos crentes, quando apenas importa deixarmos penetrar em nós a ternura de todos os que efectivamente acreditam. Eu, pelo menos, acredito nesta imensa multidão dos que dizem que acreditam e que cria esta epidemia de crença que nos acaba por submergir em cantos da “silent night” que dizem ter sido compostos pelo nosso D. João IV.
Hoje é o dia em que a noite fria pode ser acolhedora porque apetece lareira e mãos dadas, missa do galo e cedência à mais bela mentira da nossa civilização ocidental quando, para celebrarmos o real nascimento do menino-Deus elevámos a data do sincrético pagão do solstício a símbolo cristão, agora transformado em “marketing” pelas novas catedrais de consumo do capitalismo global.
Hoje é o dia de sofrerem especialmente os que vivem na ilusão de estarem sós, pensando que são excepção, quando quase todos somos a tal multidão solitária, onde não há excepções ao frio da alma, se houver alma. Hoje é o dia em que os noticiários começam com acidentes de aviação, naufrágios e muitos desastres rodoviários, listando-se mortos e feridos graves, em comparação com as bases de dados das anteriores tragédias, ocorridas no mesmo dia e onde sempre fica bem um editorial de jornalista-estagiário sobre os atentados aos direitos dos homens.
Hoje é o dia em que a televisão faz reportagens sobre bacalhau com grão, rabanadas e vinho-espumante, com muitos sem-abrigo comendo bolo-rei sob uma tenda aquecida, provisoriamente montada pelo voluntariado da acção social, a que os socialistas chamam caridadezinha.
Hoje é o dia em que o senhor ministro da justiça costuma ir visitar os presídios estaduais, para se solidarizar com os detidos e comer da respectiva sopinha na cantina das grades. Reparei agora que já lá não foi a Celeste Cardona, pois que passou a administradora da minha conta na Caixa Geral de Depósitos, que já foi de outra Previdência e Crédito, quando tinha pujante a famosa secção do Prego. Por isso, dei ontem uma volta ao lusco-fusco do cair da tarde e senti a solidão da gente do fala-só, sentindo o desespero da velhota de robe chinês que passeava o cão, do emigrante africanos que vasculhava restos de lixo ou da senhora dona de outras eras que no café tomava uma torrada em seu café, só porque o supermercado fechou mais cedo e estava apenas aberta a loja “Fortuna” dos chinocas, mas sem quaisquer clientes.
Hoje é o dia em que reparamos que não há destes natais na Rússia, na China, na Índia, no Paquistão ou na Indonésia, isto é, em mais de metade do mundo. É o dia em que reparamos em que o Papa já não é o João Paulo II e onde importa concluir que os ricos são cada vez menos e cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais e cada vez mais pobres.
Hoje é o dia em que aproveito a ida ao blogue, para agradecer todos os votos de boas festas e santo natal que fui recebendo e para os retribuir, com mais votos de ano novo com boas entradas.
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