a Sobre o tempo que passa: Entre o neo-feudalismo e a anarquia ordenada, nesta centralização dita desconcentradora e regionalizadora

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.3.06

Entre o neo-feudalismo e a anarquia ordenada, nesta centralização dita desconcentradora e regionalizadora

Há dias em que somos simples escravos da senhora D. Agenda, não por nos termos engando numa marcação, mas porque há duas coisas ao mesmo preciso horário e às quais deveríamos ir, mesmo que sejam da socialite. E hoje tanto apetecia responder ao convite de Seixas da Costa como ao de Conde Rodrigues para o lançamento de dois livros. Sou obrigado a preferir o do antigo aluno que, apesar de socialista e membro do governo, continua à procura do liberalismo de esquerda à Bobbio e Guilherme de Oliveira Martins. Porque quem passa os olhos pelas parangonas, para além das questionices dos partidos, entre os ciúmes de Mendes e os antagonismos militantes de Ribeiro, apenas nota que há polícias a prenderem polícias, juízes a elegerem listas de juízes e anúncios de listas e listas de medidas governamentais, em regime de propaganda nacional, sem secretariado, mas com marketing.

Parece que o tal Estado a que chegámos, dito Moderno e Burocrático, sabendo que é centralista e concentracionário em demasia, pretende ir para a Meia Maratona do fingimento fingir que a dita é maior do que a Légua da Póvoa. Vai daí, descobriu que só é novo aquilo que se esqueceu e tratou de repescar uma ideia que o ministro da presidência do salazarismo, um tal Marcelo Caetano, lançou nos anos cinquenta do século XX, o "slogan" da reforma administrativa, que tem servido de discurso de justificação para a criação de uma gigantesca burocracia anti-burocrática e de uma centralista tecnocracia dita desconcentradora, numa linha de cumplicidade entre o PSD e PS que vão chamando à coisa Modernização Administrativa e Reforma do Estado, umas vezes com Secretariados, à maneira do defunto "Secretariado técnico da presidência do conselho de ministros", o pai dos planeamentistas, outras, com Ministros como o foi o Alberto Martins.

Vale-nos que Sócrates está muito satisfeito e pode também satisfazer outro colega de ideias e de macaquices reformistas à "action man", o presidente Cavaco, com esta de regionalizarmos de cima para baixo e de reformarmos do lado para dentro. Por mim, prefiro notar que a gigantesca burocracia mental dita desburocratizadora, perdida em manuais de desenvolvimentismo keynesiano ou pós-marxista, parece equivaler à centralização dita regionalizadora, numa dessas habituais usurpações conceituais daqueles discursos justificadores do poder nominativo, onde o verbo substitui o acto.

Tudo se parece aliás com o jacobinismo centralista da comissão apátrida, sita em Bruxelas, que prostituiu o belo conceito de federalismo, nesse propositado nominalismo confusionista, onde os detentores do poder continuam a passear impunemente o próprio monopólio da palavra, assente nos quilos de papel produzidos pelos chamados técnicos. E a tal coisa a que chamam reforma usurpa a própria inteligência, quando, manipulando o subsídio distribuído entre os favoritos das sucessivas cortes, se acaba por estrangular o próprio pensamento livre que, devendo estar nas universidades, acaba por ser esmagado pelo decretino estadual da avaliação, nesses meandros de um "Big Brother" que sempre foi inimigo dos homens livres, nomeadamente pela estadualização do próprio mecenato.

Daí que me ria com o empate obtido entre os porteiros e os ribeiros no conselho dito nacional do CDS, para que a todos pareça que o marques mendes é o único bordão que pode transportar os laranjas nesta travessia do deserto que é o estado de graça da nossa coabitação à lusitana, a qual coroa este neofeudalismo e esta anarquia ordenada, onde mil e novecentos juízes escolhem à porta fechada a lista que os há-de fazer heróis mediáticos e pontas de lança de um pretenso Estado de Juízes que também tenta usurpar o conceito de Estado de Direito, onde meros interesses de caserna podem transformar o órgão de soberania que administra a justiça em nome do povo em mera boca que pronuncia as palavras de uma lei ditada pela partidocracia. O corporativismo semeado estadualmente por Salazar, através da tímida criação de duas ordens profissionais, ameaça transformar o neo-feudalismo em regra de um salve-se quem puder, num país onde há cada vez mais pés e cada vez menos botas.