a Sobre o tempo que passa: Entrevista, hoje, publicada no semanário "O Diabo"

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.5.06

Entrevista, hoje, publicada no semanário "O Diabo"

«O audiovisual é um factor de unidade europeia por excelência», como disse Simone Veil, ou pode ser promotor de afastamento social e humano?

Tanto não considero o audiovisual como uma espécie de D. Sebastião tecno-social como não temo que ele seja o diabo do Big Brother , capaz de corrigir, ou agravar, os antiquísismos e futuros vícios deste péssimo regime político chamado democracia que, apesar de tudo, constitui o menos péssimo de todos os regimes que temos experimentado. Tal como conheço os erros dessa mistura de “marxismo” mais “electricidade”, como Lenine chamava ao comunismo, também não me iludo com os nomes da “teledemocracia”, “tecnopolítica”, “videocracia” ou “sondajocracia”, mesmo que se disfarcem com a bela imagem do “referendo electrónico”, dado que as chamadas “tecnologias da liberdade” podem facilmente ser usurpadas pelas “tecnologias do controlo”.

Qual o papel da televisão nos dias de hoje?

A televisão, ao dar voz aos medos e preconceitos do povo, pode transformar-se naquilo que já era denunciado por Platão, naquele animal que chama boa às coisas que lhe agradam e más às coisas que ele detesta. Pode transformar-se naquilo que Bertrand de Jouvenel qualificava como a arte de conduzir habilmente as pessoas ao objectivo desejado, utilizando os seus conceitos de bem, mesmo quando lhe são contrários. E tal como Lincoln, assinalarei é sempre possível enganar uma pessoa, tal como é também possível enganar todos, uma vez; mas é impossível enganar sempre todos. Com efeito, o perigo da televisão é o perigo de toda a comunicação que se estabelece entre os donos do poder e o povo quando se vai além da persuasão e se passa para a zona do artifício e da manha, gerando-se um populismo que chegou a ser utilizado pelos instauradores de regimes autoritários e totalitários, mas que também funciona na propaganda democrática, no âmbito da chamada personalização do poder. Como assinala Max Weber, desde que apareceu o Estado Constitucional e, mais completamente, desde que foi instaurada a democracia, o demagogo é a figura típica do chefe político no Ocidente". Uma demagogia que, depois de se transmitir pela palavra impressa e através dos jornalistas, passou para a rádio e para a televisão.

Que repercussões teria o fim da televisão ou que mudanças aconteceriam no mundo se ela desaparecesse repentinamente?

Era o mesmo que imaginarmos o que seria a vida humana se se desse o desaparecimento da escrita…

Para si a televisão é um meio imprescindível para se manter informado, ou escolhe outro tipo de comuninação?

O fenómeno da comunicação política é objecto de uma particular atenção, nomeadamente quanto ao papel dos meios de comunicação social e quanto às reflexões sobre a propaganda e a persuasão políticas. E várias são as pistas de estudo; o da retórica política; a influência dos grandes talk shows; a relação entre os opinion makers e os editorialistas; o papel do cinema; os novos modelos de comunicação electrónica, etc. Contudo, a questão da comunicação tem sobretudo a ver com a necessidade da redescoberta de um novo espaço público de debate democrático, dado que a procura do representante e a emissão da opinião são hoje dependentes desses intermediários que constituem o chamado quarto poder. Se alguns ainda se iludem quanto à circunstância do jornalista e do comunicador visível ou audível se assumirem como seres autónomos, quem analisar, com realismo, os fenómenos em causa depressa descobre a rede invisível que os coordena, condiciona, censura ou controla. As heróicas campanhas pela liberdade de expressão, contra as censuras institucionais e as leis da rolha, parecem hoje ultrapassadas pelas circunstâncias da aldeia global e pelos mais caseiros negócios dos novos oligopólios que nenhuma lei contra a concorrência desleal ou a concentração de empresas tem podido tornear, ao mesmo tempo que uma nova e subtil forma de censura vai emergindo através da ditadura das medições dos consumidores.



Pessoalmente, que programas o deixam preso ao pequeno ecrã?

Como não há efectivos programas de discussão política, para além das “cassetes”, “casse têtes” e “disquettes” das guerras por procuração da partidocracia, prefiro os programas de discussão da futebolítica, porque, nestes, me consigo distrair e viver activamente a força da opinião.


O que o deixa mais escandalizado quando vê televisão?

Quando os telejornais dizem, sobre uma banalidade, que se viveu um acontecimento histórico

Enumere cinco pecados televisivos….

Os que também afectam o poder político: de um lado, o elitismo, o burocratismo e a corrupção, do outro o indiferentismo e a apatia das massas. O que leva à crescente negação da cidadania, à opressão da autonomia da pessoa, que tende a deixar de ser “autor” e a passar a mero “auditor”, face aos “actores” e fantoches que os manipuladores do Estado-Espectáculo promovem

Do panorama nacional qual o canal eleito como favorito?

O Canal História da TVCabo

Que balanço faz da passagem da RTP2 para a 2? Acha que houve mudanças positivas?

Todas as mudanças geram entropia, aquilo que Rudolf Clausius, nos finais do século XIX, referia, ao falar na existência de uma nova grandeza variável da energia... a quantidade de energia que, sendo gasta numa mudança, é irrecuperável pelo sistema e fica para sempre na zona do desperdício no balanço da energia do Universo.

Como poderá ser idealizado um modelo de serviço público de televisão como elemento estratégico face aos operadores comerciais?

Será difícil que isso venha a acontecer enquanto os servidores públicos cimeiros não repararem que até os ministros, de acordo com a etimologia, são um simples “servus ministerialis”, um escravo da função, ofício ou ministério…

Como interpreta os espaços televisivos que utilizam os políticos como comentadores? Qual o efeito negativo que estes «opinion makers» pode ter nos telespectadores menos informados?

Não me incomoda que eles apareçam, apenas desligo o aparelho quando eles começam a falar porque sei quase sempre o que eles vão dizer porque conheço a “cassete”…


Que diferenças aponta aos espaços informativos dos cinco canais nacionais (RTP1, RTP2, SIC, TVI e SIC-NOTÍCIAS ). E qual deles consegue cumprir mais rigorosamente com as regras do jornalismo?

Grande parte da informação não passa de tradução em calão das grandes agências internacionais e, no plano doméstico, de uma espécie de transacção entre as agências de comunicação que fazem a imagem dos donos do poder… Apesar de tudo, vivo entre os telejornais da RTP1 e os espaços de hora a hora e de debate da SIC-Notícias e da RTPN.

Imagine: era convidado para director de programas, quais as áreas em que apostava? Que mudanças introduzia?

Não aceitava tal função, porque ela deve caber a um profissional da informação.

Numa visão futurista, como será o amanhã no mundo da televisão e que mudanças antevê na caixa que mudou o mundo?


A aldeia global da comunicação levou a que a forma passasse a preponderar sobre a substância, que o continente se tornasse bem mais importante que o conteúdo, pelo que se tornou mais fácil a descoberta sobre o rei ir nu, com o consequente desencanto, a partir do momento em que se descobre a falta de autenticidade da imagem. Fala-se no aparecimento de uma comunidade electrónica, de uma democracia catódica, geradoras de uma nova ideologia. O público transforma-se num Estado-Espectáculo, numa teatrocracia, num Estado-Sedutor, surgindo uma teledemocracia, um videopoder. Recentemente, chegaram mesmo a propor uma nova disciplina que não seria a moral nem a política, mas antes a mediologia, com a missão de explorar as vias e os meios da eficácia simbólica, decompondo-a na revolução fotográfica, na passagem do Estado do escrito ao Estado do écran e nas aventuras do índice. E, na mesma linha, são fundamentais os estudos sobre a opinião pública, principalmente o entendimento dos fenómenos das sondagens e do controlo das audiências. Aliás, a democracia representativa tende a ser desafiada pelas degenerescências de certa sondajocracia tão maligna quanto as experiências de democracia directa vanguardista. A mistura do pior do populismo e da demagogias, com as eventuais manipulações da opinião pública pode conduzir, aliás, a novas formas de inquisitorialismo, promovida por uma minoria activa de uma intelligentzia geradora de um big brother bem mais amordaçante que anteriores formas de lavagem ao cérebro promovidas pelos bacilos revolucionários e pelos intelectuais orgânicos.