a Sobre o tempo que passa: Memórias da ascensão de Cavaco, da MP, de João Franco e dos morgados ... em segundo dia de provas de agregação nesta universidade pré-bolonhesa

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.5.06

Memórias da ascensão de Cavaco, da MP, de João Franco e dos morgados ... em segundo dia de provas de agregação nesta universidade pré-bolonhesa



Neste dia 19 de Maio, que é véspera do dia vinte, neste mês-encruzilhada, onde, em Portugal, pelas razões climáticas, já assinaladas por Montesquieu, se culmina o ciclo de tradicionais activismos, onde as abriladas precedem outras revoltas, são muitas as efemérides a debicar. A mais próxima de nós tem a ver com o processo de Blitzkrieg que levou um ex-ministro das finanças a fazer a rodagem de um carro novo até à Figueira da Foz, assim se instalando, primeiro, na liderança do PSD, e, depois, na presidência da pátria. Chama-se Aníbal Cavaco Silva e o ano do veni, vidi, vinci é 1985. Apenas recordo que o grande e inesperado argumento, que o fez guindar até nós, teve a ver com o apoio que prometia à candidatura presidencial do actual ministro dos estrangeiros deste governo socialista, de quem era unha com carne até à questão calada das dívidas de campanha.

Na altura, era eu um jovem membro da comissão política de um partido já extinto, apesar de ver que o respectivo alvará ainda anda por aí, apoiando a presidência do meu falecido professor, Francisco Lucas Pires. Estávamos em plena reunião coincidente com o Congresso do PSD e lembro-me de ter alvitrado uma golpada maquiavélica: mandarmos um telegrama colectivo de apoio ao professor de finanças, para ver se ele não era mesmo eleito. Por outras palavras, o meu não-cavaquismo começou precisamente pelo meu mais antigo não-freitismo. Os dois persistem, teimosamente.



A efeméride número dois tem a ver com o ano de 1936: a criação da dita "Organização Nacional da Mocidade Portuguesa", aquilo a que ternamente chamávamos "bufa" ou "feijões verdes". Quando conheci a senhora, ainda ela era estupidamente obrigatória para jovens liceais nos dois primeiros anos, obrigando-nos a ter que ir ao sábado marchar para o recreio do liceu e já sem qualquer ideia de obra ou manifestações de comunhão. Se publicarem a lista dos voluntários comandantes de falange e de bandeira da dita cuja, espantar-se-ão com os nomes de ilustres hierarcas do actual regime, incluindo socialistas eméritos que assim semeavam o respectivo antifascismo genético, na habitual mama da teta estadual. Confesso que, fora alguns acampamentos, sempre odiei a coisa.



Terceira efeméride, este dia em 1906, quando o rei D. Carlos tenta liquidar o apodrecimento dos regeneradores hintzáceos e chama para o governo o beirão do interior João Franco, líder do nascente partido dos regeneradores liberais que, contrariando a decadência rotativista, tenta iniciar uma governação à inglesa, com o apoio dos progressistas de José Luciano. A governação à turca só vem depois, com o consequente regicídio. Apenas quero recordar que, entre os apoiantes do franquismo, estão figuras como o sempre monárquico Paiva Couceiro, o sempre industrial Alfredo da Silva, ou o posterior republicano Norton de Matos. E, destes três, só foi salazarista o segundo. Talvez visionando Salazar como um desses habituais "feitores dos ricos", como lhe chamava o Marquês da Graciosa.



Quarta e última efeméride, a abolição dos morgados em 1863, uma das interessantes conquistas da monarquia liberal, quando ainda havia militantes da ideia de Manuel Fernandes Tomás, Alexandre Herculano e Passos Manuel.

E, por hoje, assim fecho a minha participação blogueira. Estou mobilizado por tarefas académicas, no segundo dia das provas de agregação de José Artur Duarte Nogueira, na Faculdade de Direito de Lisboa, onde tenho a honra de ser membro do júri e onde ontem fui arguente, talvez nas últimas provas públicas onde participo sob a presidência do Reitor, Professor José Barata Moura, cuja criatividade e sentido universitário sinceramente admiro, especialmente quando, estando ao seu lado, vou reparando nos traços de criatividade com que vai enchendo folhas, enquanto a ampulheta vai escorrendo o tempo que passa. Paradoxalmente, as normas que regem as provas de agregação continuam a ser pacificamente aceites pela corporação, apesar de flagrantemente inconstitucionais, por causa do voto secreto, de bola preta e bola branca, sem fundamentação individualizada. Endogamia oblige...