a Sobre o tempo que passa: A ilusão gerontocrática e as traduções em calão do papismo e das maçonarias exógenas...e sempe a inveja como prólogo dos cesarismos

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

18.5.06

A ilusão gerontocrática e as traduções em calão do papismo e das maçonarias exógenas...e sempe a inveja como prólogo dos cesarismos



Na noite de 18 para 19 de Maio de 1870, regimentos militares subvertidos por oficiais que invocam o setembrismo cercam o Palácio da Ajuda e pressionam D. Luís I no sentido da demissão do governo. Saldanha, então com 80 anos, coloca-se à frente dos regimentos rebeldes (caçadores 5, artilharia 3 e infantaria 7), enquanto populares, liderados por Bernardino de Sena Freitas, assaltam o castelo de S. Jorge. Tiroteio entre os rebeldes e a guarda do palácio. Saldanha é imediatamente recebido por D. Luís. Saldanha tem, então, o apoio dos penicheiros e dos adeptos do bispo de Viseu. Consta que Latino Coelho é quem lhe redige as proclamações e os decretos. Como vai comentar Oliveira Martins, então ainda republicano, alterou-se a ordem por coisa alguma. No dia seguinte à saldanhada, o velho marechal serve de símbolo para uma breve interrupção ditatorial, inaugurando, poucos dias depois um gabinete formado de elementos heterogéneos, agremiados por interesses ilícitos, sem unidade de pensamento ou de acção, para voltar às palavras de Joaquim Pedro.

Herculano bem observava, poucos dias antes: a democracia estende constantemente os braços para o fantasma irrealizável da igualdade social, invocando o direito divino da soberania popular, considerado tão ilegítimo quanto o direito divino da soberania régia. Salienta que tal ideia é marcada pela inveja, concluindo que a principal feição do republicanismo democrático é o de servir de prólogo ao cesarismo. Até criticava o modelo norte-americano dado converter o homem em molécula e repugna-lhe ver o homem apoucado, quase anulado diante da sociedade. Acrescenta mesmo que no único país onde a democracia se tem encontrado com o homem selvagem ... este achou nela não a civilização mas a morte.

Júlio Dinis edita Serões da Província e surge um estudo sobre as greves de Caetano d’Andrade Albuquerque, Direitos dos Operários. Enquanto isto Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz publicam em folhetins o romance O Mistério da Estada de Sintra. Destaque também para o romance popular de Manuel Maria Rodrigues (1847-1899), A Rosa do Adro. Surge a Associação dos Advogados de Lisboa, com abertura solene no dia 28 de Outubro. No ano da guerra franco-prussiana, da III República Francesa, da proclamação do dogma da infalibilidade papal, chega a Espanha um novo rei, Amadeu de Sabóia, o segundo filho do rei de Itália (Dezembro).

A III República é instaurada em 4 de Setembro de 1870, por acção dos chefes da oposição republicana, Jules Ferry, Gambetta, Jules Favre e Jules Simon, depois da derrota de Sedan (2 de Setembro), instituindo-se um governo de defesa nacional. E com Paris, cercada pelos prussiano, o general Émile Kératry foge de balão e chega a Madrid em 19 de Outubro, propondo a Prim que se transforme em Washington, proclamando uma república ibérica, onde se integraria Portugal.

É reflectindo estas preocupações que António Enes edita A Guerra e a Democracia. Considerações sobre a Situação Política da Europa, onde defende a instauração de uns Estados Unidos da Europa, temendo que a guerra franco-prussiana venha a reforçar as tendências iberistas.

A Maçonaria francesa que, durante o II Império, fizera, sobretudo, uma propaganda racionalista, depois de reforçada com a adesão de Emile Littré, Combes e Jules Ferry, faz uma viragem anticlerical e até elimina as referências ao Grande Arquitecto do Universo. O Papa Pio IX, no auge da chamada Questão Romana, pelo Breve Inter Tot Pietatis, agradece aos portugueses a defesa da sua causa, no ano em que o Padre Manuel Nunes Geraldes publica O Papa-Rei e o Concílio, obra que vai ser contraditada no ano seguinte por António José de Carvalho, em O Poder Temporal e os Papas (14 de Dezembro).

Não tardará que sejamos inundados por todas estas traduções em calão que nos chegavam do comboio de Vilar Formoso... Saldanha não era causa, mas sintoma. De uma maçonaria exógena que cortava as suas raízes em nome de um pretenso D. Sebastião científico. De iberistas que se iludiam com uma mudança doméstica feita por impulsos externos. De um europeísmo instrumental que nos pudesse dar desforra. Ou de um congreganismo mais papista que o papa que pusesse na ortodoxia a discórdia criativa do nosso modo de ser. Ontem, como hoje, o Portugal de sempre. Como ensinava Herculano, a inveja serve sempre de prólogo ao cesarismo.