a Sobre o tempo que passa: Porque temos o nós dentro do eu, importa esquecer que também a solidão vive dentro de nós

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

8.5.06

Porque temos o nós dentro do eu, importa esquecer que também a solidão vive dentro de nós

Nunca gostei muito das decisões, votações ou revoluções dos pretensos homens sem sono. Prefiro os que se levantam cedo, pela madrugada, acordando ao som da passarada, para que um novo dia os lave das angústias. Vou à agenda das recordações e marcações e noto que daqui a pouco tenho a honra de participar numa homenagem que a Universidade Católica vai prestar a Mário Bigotte-Chorão. Mas ainda tenho tempo para reparar que hoje se celebra a morte de Sebastião José de Carvalho e Melo (1782), no mesmo dia da capitulação da Alemanha nazi (1945).

E que ontem nem tive tempo para assinalar que Lisboa e o Vaticano subscreveram a Concordata que ainda nos rege (1940). Ou que os franceses foram derrotados em Dien Bien Phu (1954). Porque se, em 7 de Maio de 1829, o terrorismo de Estado miguelista enchia as mãos de sangue, executando opositores, já em 6 de Maio de 1834, eram os próprios miguelistas caçados pelos novos vencedores da vindicta, sendo encontrado morto numa palhota esse grande intelectual e político chamado José Acúrsio das Neves.

Sempre esta espiral da violência física, acicatada pelas falsas ideias, sobretudo para quem tem memória e reconhece a pequenez de, muito individualmente, repetir erros de sempre, entre fantasmas e preconceitos. Logo, apenas tenho a obrigação de, aqui e agora, me pensar, pensando nos outros que somos nós, porque temos o nós dentro do eu e nada de novo debaixo do sol.

Continuamos a não fazer aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem. Continuamos a temer a comunidade das coisas que se amam. Continuamos este vazio de não sentirmos o próximo como precisamos que o outro nos sinta e compreenda. E espiralamos em dúvidas, descrenças e algumas violências. Por mim, hoje, não atiro mais nenhuma pedrada. Debato-me em silêncio e em revolta, contra quem sou, temendo a cobardia de fugir, sem olhar o sol de frente.

Vou à minha arca dos poemas por fazer e reparo que as páginas estão há muito tempo em branco, apesar de as escrever todos os dias. E tento sulcar livre em meu destino, mesmo que seja contra meus medos. E assim me continuo nesta procura de estar vivo, de sentir que posso ser mais se me perdoarem.

Apetece voltar a ser alma errante de nómada que gosta de parar e percorrer a prometida viagem que o mar das trevas sempre sulcou. Mesmo quando há vozes que se não ouvem ou não lembrança dos sinais que, rasgando a carne, nos marcaram.

Porque basta um gesto, um sorriso, para se encher uma página de azul e esquecer, por momentos, a solidão que vive dentro de nós.