a Sobre o tempo que passa: "Não é vergonha ser fraco, mas o é não querer ser forte", onde se fala de Chirac, escravos e hierarquia das potências

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.5.06

"Não é vergonha ser fraco, mas o é não querer ser forte", onde se fala de Chirac, escravos e hierarquia das potências



No dia em que se recorda o nascimento de Salvador Dáli (1904), o tal que se dizia anarquista, mas monárquico, e a morte de Afonso Costa (1937), que nunca foi anarquista e sempre detestou os monárquicos, apetece lembrar que ontem o presidente francês decidiu comemorar a abolição da escravatura, visando colocar a França na senda da vanguarda humanista. Por isso, como português, tenho de recordar os anos de 1857 e 1858, quando tínhamos um governo de esquerda e um rei assumidamente liberal e ousámos apreender uma barca frances, Charles et George, que negreiramente ofendia as leis universais e nacionais de abolição do tráfico de escravos. Só que Paris, também muito civilizadamente, preferia praticar o princípio da hierarquia das potências, decidindo humilhar-nos, através de um ultimato que precedeu o ultimato britânico de 1890.



A palavra escravo vem do latim medieval sclavus, que talvez tenha tido como intermediária a expressão francesa esclave, de slav, os prisioneiros eslavos reduzidos à servidão pelos povos germânicos. Tal deve ter derivado dos povos germânicos terem sclavi que eram sclavini, isto é, escravos da Esclavónia. Em Portugal só no século XV é que começa a usar-se a expressão escravo, predominando até então o termo cativo.



Quanto ao processo de abolição da escravatura em Portugal, saliente-se que em 10 de Dezembro de 1836 era proibida a importação e exportação de escravos nos territórios portugueses a Sul do Equador, excepto para os proprietários de escravos de Angola que também tivessem propriedades no Brasil. No entanto, no Reino Unido, eis que em Agosto de 1839, Palmerston apresentou um bill para a supressão do tráfico da escravatura, que foi aprovado nos Comuns, mas rejeitado na Câmara dos Lordes, por oposição de Wellington, para quem se Portugal se sujeitasse à legislação britânica deixaria de ser uma nação independente.

Nesse bill de Palmerston, os navios britânicos passam a ter o direito de visitar qualquer navio português suspeito de transportar escravos, enquanto os capitães portugueses seriam julgados em tribunais britânicos, com a carga susceptível de ser perdida a favor da Coroa britânica. Sabrosa, em 26 de Fevereiro, em plena sessão do Senado chamara aos ingleses bêbados e devassos. O governo, considerado o último que se instituiu inteiramente com elementos do partido setembrista, pediu a demissão, depois de o governo britânico ter decidido controlar a navegação portuguesa ao sul do Equador, por causa do tráfico dos escravos.

No entanto, só em 14 de Dezembro de 1854 é que se emite um diploma consagrando a liberdade para os escravos pertencentes ao Estado. Em 24 de Julho de 1856, surge a liberdade para os filhos dos escravos nascidos no ultramar, depois de atingirem os 20 anos. Por decreto de 29 de Abril de 1858 é finalmente fixada a data de 29 de Abril de 1878 para a extinção da escravatura. Esta data-limite será antecipada pelo decreto de 23 de Fevereiro de 1869, dando-se assim a abolição completa da escravatura em todos os territórios sob administração portuguesa.

Mantêm-se no entanto alguns escravos numa situação de transição prevista durar até 1878, mas que é antecipada em 2 de Fevereiro de 1876, por iniciativa do então par do reino Sá da Bandeira. Refira-se que o tráfico de escravos foi formalmente proibido pelo Congresso de Viena de 1815. Mas nos Estados Unidos da América tal apenas acontece depois do fim da Guerra da Secessão (1862-1865), enquanto no Brasil foi proclamada em 1888, concretizando-se um pedido da Princesa Isabel ao seu pai, o Imperador D. Pedro II, visando comemorar-se o jubileu sacerdotal do papa Leão XIII.


Voltando ao Portugal de 1858, estávamos no ano da morte de Rodrigo da Fonseca e Henriques Nogueira que, na lápide funerária assumiu a defesa da ideia da federação política das Espanhas, Alexandre Herculano, que adquire uma quinta em Vale de Lobos, Santarém, onde se começará a instalar em 1866, recusa o lugar de deputado por Sintra, para que foi eleito, enquanto entram em Portugal as Filhas de Maria Imaculada, ou Filhas de Maria e a maçonaria lança a Associação Popular Promotora da Educação do Sexo Feminino (Outubro), onde se destaca D. António Alves Martins, com o apoio de Herculano, Passos Manuel, José Estêvão, Joaquim Filipe Soure e outros.

A barca, vinda de Moçambique, chega a Lisboa em 13 de Agosto. O ultimato francês para a entrega da barca é de 21 de Outubro. Mas, em 5 de Novembro é proferido o célebre discurso de José Estêvão sobre o apresamento. Porque Paris não concorda que o assunto seja submetido à arbitragem de uma terceira potência. D. Pedro V observa que não é vergonha ser fraco, mas o é não querer ser forte. José Estêvão diz que apanhámos a bofetada que a França quis dar à Inglaterra.