a Sobre o tempo que passa: Quando Sophie Calle tinha treze anos de idade...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.5.06

Quando Sophie Calle tinha treze anos de idade...

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10 de Maio. Em 1966, o ministro da justiça de Salazar, Antunes Varela, faz a apresentação solene do projecto de novo Código Civil. Em 1981, em França, a eleição de Mitterrand e o consequente novo governo de Pierre Mauroy levam a uma esboço de inflexão da política europeia.

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1966 é e era um ano muito especial, có dentro de nós. Estávamos no quadragésimo aniversário do 28 de Maio, no quinto ano da guerra colonial e a dois do fim da governação de Salazar, quando Mao desencadeava a chamada revolução cultural. Se simbolicamente se atinge o clímax a política das fachadas do Estado Novo, com Arantes e Oliveira a repetir o modelo de Duarte Pacheco, para que Salazar pudesse superar o fontismo, eis que o regime acaba por perpetuar-se no seio da sociedade civil, não pelos melhoramentos materiais, mas pela emissão do respectivo Código Civil, graças a uma geração jurídica que misturando a jurisprudência dos conceitos com a doutrina social da Igreja Católica, assume uma concepção social de direito e um ritmo pragmático de jurisprudência dos interesses, eliminando-se os vestígios individualistas do liberalismo e do krausismo da geração do Visconde de Seabra e daquele Código Civil liberdadeiro, então acusado de padecer de um excesso de originalidade.E sobre tal se diz que um vinho novo vai correr nos velhos tonéis que a ciência jurídica pôde armazenar ao longo de um século (Antunes Varela, sobre o novo Código Civil).

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Já na França de 1981, os socialistas que, na campanha contra Giscard, haviam proclamado a Europa dos trabalhadores contra a do grande capital, bem como um espaço social europeu, chegam a reclamar contra a supranacionalidade, invocando a necessidade do regresso ao direito de veto. O próprio Mitterrand acusara o antecessor de praticar uma política importada da Alemanha e da circunstância do mesmo privilegiar o diálogo directo com Bona. Esta turbulência entre a França socialista e a RFA governada por uma coligação SPD-FDP, sob a presidência de Helmut Schmidt e com Gensher nos negócios estrangeiros, vai terminar logo em 1982, com a subida ao poder em Bona de Helmut Kohl e a instituição de uma coligação CDU/CSU-FDP.

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Às vezes, a política é como a ficção que quer transformar a realidade em arte política. Por isso, cito o que ontem aprendi ao fim da tarde, em Kiekebenart, repetindo um texto de Freud, de 1908: cria-se a ficção quando se considera a realidade insuportável, ainda em memória viva do ano 1966, onde, para bom compeendedor, meias palavras bastam. Por isso gosto bem mais do efectivo criador, daquele que finge que é verdade aquilo em que na verdade crê, onde o fingimento é a própria realidade e onde a sobre-realidade é o anti-surrealismo, numa ficção feita com brutais pedaços de um quotidiano, onde, entre o vivido e o imaginado, há descrição verbal em palavras contidas que procuram ser o espelho dos dramas humanos do quotidiano.

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E só quando temos a imagem da pessoa é que lhe conseguimos roubar a alma. Logo, dizemos que é racional quando, vencendo a emoção, tentamos não ter identidade, secando-nos por dentro, passando tudo o que temos para a obra que projectamos, de maneira a que dentro de nós fique aquele nada que é o outro. No fundo, quando pomos o nós dentro do eu e passamos a ser todos os outros, diluindo-nos na multidão das pessoas comuns.

Em 1966, há uma série de conferências comemorativas do 40º aniversário do 28 de Maio, com discurso de Kaúlza de Arriaga sobre a defesa nacional, onde critica abertamente o comportamento dos militares em Goa, em Dezembro de 1961 (15 de Outubro). Outros conferencistas são José Manuel Fragoso, Ester de Lemos, Daniel Barbosa (denuncia o condicionamento industrial), José Veiga Simão (sobre a investigação científica, antecipando a sua chamada ao governo de Salazar, Soares e Guterres), António Furtado dos Santos, Álvaro da Costa Pimpão, José Canto Moniz e Joaquim Trigo de Negreiros. Na Assembleia Nacional, discursam Baltazar Rebelo de Sousa, José Hermano Saraiva e Melo e Castro. A RTP, apesar de gravar, não transmite a coisa. Só o discurso de José Hermano Saraiva é divulgado, mas, como não tinha sido gravado, tem que ser encenado à noite, com o discursador a ter que falar para um hemiciclo vazio. Sophie Calle tinha treze anos de idade.