O normal é haver anormais neste estado a que chegámos
Confesso, em primeiro lugar que não tenho receitas ideológicas ou propostas de alternativa geopolítica para o actual modelo em que este país submergiu. Se messianicamente me sentisse parte de uma qualquer seita com uma alternativa salvacionista, lá iria para o combate. Até já não tenho partido e nem sequer faço parte dos independentes que querem ir para uns quaisquer estados gerais da direita ou da esquerda. Prefiro viver como penso e continuar liberal sem ser neoliberal, tradicionalista sem ser neoconservador e ser fiel ao lema que aqui incluo na coluna À esquerda.
Daí que possa dizer que estamos condenados a esta tirania situacionista. Estamos condenados, em virtude de pressões sistémicas do ambiente que nos rodeia como país a esta democracia pluralista gerida por Blocos Centrais. Estamos condenados a continuar a ser uma província do euro. Estamos condenados a ser uma sociedade e uma economia abertas à globalização e ao presente modelo de capitalismo sem ética, onde morrem seiscentos mil iraquianos, para o cumprimento de um qualquer plano estratégico errado.
Em segundo lugar, muito domesticamente culpados, temos, para enfrentar tal desafio, um Estado Velho, filho de um pretenso Estado Novo que o PREC e a pós-revolução soarista e cavaquista não souberam agilizar em tempo de oportunidades perdidas. Porque o dito estado a que chegámos tem muita gordura, alguma celulite de brilhantina, mas continua ineficaz, com pouco músculo, nervos mal irrigados pela criatividade e ossos sustentadores descalcificados. Estamos cada vez mais anafadamente envelhecidos, psiquicamente desencantados e com alguns sintomas de depressão.
Passámos do velho Estado-Cão da Guarda da Propriedade alimentado a impostos para um Estado Social, quando Salazar traduziu com meio século de atraso os modelos de Napoleão III e de Bismarck, mas esse pretenso segurador do socialismo catedrático e da Escola Social de le Play, segundo as cartilhas de Comte e as lições de doutrina social de Marnoco e Sousa, transformou-se em mera caridadezinha de um banco dos aflitos, entupindo o serviço de urgências, onde infelizmente se passou a ler o lema comunitário de que "o que é comum não é de nenhum" como coisa de que se pode abusar e que se pode estragar. Isto é, o estatismo intervencionista em Portugal destruiu a visão radical democrática segundo a qual o Estado não é um "lui" que nos é estranho e que se pode roubar, mas antes uma exigência do Estado sermos nós todos.
O próprio socialismo de consumo agravou essas contradições culturais, porque nos apareceu uma espécie de Estado Ladrão, onde o ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão, como começa a emergir com todas estas denúncias não justiçadas sobre a corrupção.
Acresce que temos uma cultura especial e uma herança política muito própria e que não podemos aplicar receitas feitas para outras índoles. Não podíamos tentar o modelo neoliberal de Thatcher ou de Blair, porque não temos uma sociedade civil autónoma, feita "establishment". Nem podemos invocar terceiras-vias nórdicas, à finlandesa, até porque nos falta a tal ética protestante a nível do esforço produtivo. Do capitalismo apenas gostamos do hedonismo do consumo e de alguma sociedade de casino que desperdiçamos na lotaria.
Mas porque sabemos que de boas intenções está o inferno cheio, não vale também a pena inventarmos o que já está inventado nem descobrirmos o que já está descoberto. Porque podemos e devemos reconhecer que temos um feitio de sonhadores que gostam de procurar o paraíso e que, de vez em quando, acertamos no princípio do ovo de Colombo e somos capazes de flexibilidade reformista, quando colectivamente assumimos o desafio da mudança.
Foi assim que fizemos e desfizemos um império africano em menos de um século, desde a Conferência de Berlim, a partir da qual começámos a subir as ladeiras das serras de Chela e a defender-nos pelo milagre de Tancos. Foi num ápice que passámos para a integração europeia, desde a EFTA e a CEE à presente UE. Tanto nos descolonizámos em 24 horas como até implantámos uma razoável democracia, escapando às garras totalitárias e à hipocrisia dos Kissinger que nos admitiam como a Cuba da Europa para vacinarmos a velha senhora contra o sovietismo. Por outras palavras, ainda podemos continuar este milagre de sermos independentes, mesmo que a independência seja gerirmos dependências, dado que a maioria dos factores de poder já não são nacionais e resta-nos a condição de bons alunos.
Não nos espantemos pois com esta teatrocracia manifestativa, como a bem conseguida jornada da CGTP de ontem, feita com jerónima e democratíssima eficácia. A democracia é este modelo de institucionalização dos conflitos, onde o normal é haver destes anormais e onde governar sempre foi o mesmo do que gerir crises. Se é verdade que não temos alternativas a esta tirania dos blocos centrais com os seus centrões sociologicamente moles, onde há dois terços de remediados e apenas um terço de excluídos, apenas temos que submeter-nos para sobreviver e arranjar alternativas de sonhos que nos possam levar a lutar para viver, através de reformas que sejam mais colectivas do que tecnocráticas, mais políticas do que económicas e financeiras, para que o povão a elas possa aderir pela chamada confiança pública.
Daí que os governantes precisem urgentemente de estudar a antropologia das nossas virtudes e defeitos. Para que o que resta do Estado de Bem-Estar não redunde no "out of control" do Estado de Mal Estar.
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