a Sobre o tempo que passa: O normal é haver anormais neste estado a que chegámos

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

13.10.06

O normal é haver anormais neste estado a que chegámos

E ao fim de uns dias, de intenso regresso, lá tenho que usar minhas lentes analíticas neste processo de ter de submeter-me para sobreviver, mas de procurar a luta para continuar a viver como penso, sem pensar muito como hei-de assim viver. Daí que me disperse em análises e comentários, algumas das quais em "cross fertilization" com alguns órgãos da comunicação social, falando com jornalistas que só conheço pelo telefone, mas que fazem parte de um companheirismo de gente do mesmo ramo, porque sempre me senti jornalista de ideias, embora pouco praticante.

Confesso, em primeiro lugar que não tenho receitas ideológicas ou propostas de alternativa geopolítica para o actual modelo em que este país submergiu. Se messianicamente me sentisse parte de uma qualquer seita com uma alternativa salvacionista, lá iria para o combate. Até já não tenho partido e nem sequer faço parte dos independentes que querem ir para uns quaisquer estados gerais da direita ou da esquerda. Prefiro viver como penso e continuar liberal sem ser neoliberal, tradicionalista sem ser neoconservador e ser fiel ao lema que aqui incluo na coluna À esquerda.

Daí que possa dizer que estamos condenados a esta tirania situacionista. Estamos condenados, em virtude de pressões sistémicas do ambiente que nos rodeia como país a esta democracia pluralista gerida por Blocos Centrais. Estamos condenados a continuar a ser uma província do euro. Estamos condenados a ser uma sociedade e uma economia abertas à globalização e ao presente modelo de capitalismo sem ética, onde morrem seiscentos mil iraquianos, para o cumprimento de um qualquer plano estratégico errado.

Em segundo lugar, muito domesticamente culpados, temos, para enfrentar tal desafio, um Estado Velho, filho de um pretenso Estado Novo que o PREC e a pós-revolução soarista e cavaquista não souberam agilizar em tempo de oportunidades perdidas. Porque o dito estado a que chegámos tem muita gordura, alguma celulite de brilhantina, mas continua ineficaz, com pouco músculo, nervos mal irrigados pela criatividade e ossos sustentadores descalcificados. Estamos cada vez mais anafadamente envelhecidos, psiquicamente desencantados e com alguns sintomas de depressão.

Passámos do velho Estado-Cão da Guarda da Propriedade alimentado a impostos para um Estado Social, quando Salazar traduziu com meio século de atraso os modelos de Napoleão III e de Bismarck, mas esse pretenso segurador do socialismo catedrático e da Escola Social de le Play, segundo as cartilhas de Comte e as lições de doutrina social de Marnoco e Sousa, transformou-se em mera caridadezinha de um banco dos aflitos, entupindo o serviço de urgências, onde infelizmente se passou a ler o lema comunitário de que "o que é comum não é de nenhum" como coisa de que se pode abusar e que se pode estragar. Isto é, o estatismo intervencionista em Portugal destruiu a visão radical democrática segundo a qual o Estado não é um "lui" que nos é estranho e que se pode roubar, mas antes uma exigência do Estado sermos nós todos.

O próprio socialismo de consumo agravou essas contradições culturais, porque nos apareceu uma espécie de Estado Ladrão, onde o ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão, como começa a emergir com todas estas denúncias não justiçadas sobre a corrupção.

Acresce que temos uma cultura especial e uma herança política muito própria e que não podemos aplicar receitas feitas para outras índoles. Não podíamos tentar o modelo neoliberal de Thatcher ou de Blair, porque não temos uma sociedade civil autónoma, feita "establishment". Nem podemos invocar terceiras-vias nórdicas, à finlandesa, até porque nos falta a tal ética protestante a nível do esforço produtivo. Do capitalismo apenas gostamos do hedonismo do consumo e de alguma sociedade de casino que desperdiçamos na lotaria.

Mas porque sabemos que de boas intenções está o inferno cheio, não vale também a pena inventarmos o que já está inventado nem descobrirmos o que já está descoberto. Porque podemos e devemos reconhecer que temos um feitio de sonhadores que gostam de procurar o paraíso e que, de vez em quando, acertamos no princípio do ovo de Colombo e somos capazes de flexibilidade reformista, quando colectivamente assumimos o desafio da mudança.

Foi assim que fizemos e desfizemos um império africano em menos de um século, desde a Conferência de Berlim, a partir da qual começámos a subir as ladeiras das serras de Chela e a defender-nos pelo milagre de Tancos. Foi num ápice que passámos para a integração europeia, desde a EFTA e a CEE à presente UE. Tanto nos descolonizámos em 24 horas como até implantámos uma razoável democracia, escapando às garras totalitárias e à hipocrisia dos Kissinger que nos admitiam como a Cuba da Europa para vacinarmos a velha senhora contra o sovietismo. Por outras palavras, ainda podemos continuar este milagre de sermos independentes, mesmo que a independência seja gerirmos dependências, dado que a maioria dos factores de poder já não são nacionais e resta-nos a condição de bons alunos.

Não nos espantemos pois com esta teatrocracia manifestativa, como a bem conseguida jornada da CGTP de ontem, feita com jerónima e democratíssima eficácia. A democracia é este modelo de institucionalização dos conflitos, onde o normal é haver destes anormais e onde governar sempre foi o mesmo do que gerir crises. Se é verdade que não temos alternativas a esta tirania dos blocos centrais com os seus centrões sociologicamente moles, onde há dois terços de remediados e apenas um terço de excluídos, apenas temos que submeter-nos para sobreviver e arranjar alternativas de sonhos que nos possam levar a lutar para viver, através de reformas que sejam mais colectivas do que tecnocráticas, mais políticas do que económicas e financeiras, para que o povão a elas possa aderir pela chamada confiança pública.

Daí que os governantes precisem urgentemente de estudar a antropologia das nossas virtudes e defeitos. Para que o que resta do Estado de Bem-Estar não redunde no "out of control" do Estado de Mal Estar.