a Sobre o tempo que passa: Neste Brasil, cadinho de muitos povos e espelho do mundo inteiro

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.9.06

Neste Brasil, cadinho de muitos povos e espelho do mundo inteiro

Mensalão, sanguessugas e ambulânciassão as palavras de maior carga emocional da política brasileira da actualidade, quando a corrupção se tornou palavra de todos os dias, gasta pelo uso e prostituída pelo abuso, nomeadamente pela invocação de uma vaga ética, destinada precisamente a corrigir o que seria natural na actividade política. Só que as denúncias de corrupção são eleitoralmente neutras, dado que todos os partidos têm titulares ou assessores implicados. Porque há oleosidades de mafiosa solidariedade que até levaram à recente decisão parlamentar sobre o fim do voto secreto dos congressistas, até para impedir que alguns se livrem de cassações.

Contudo, o drama do quotidiano parece estar mais interessado no que vai acontecer à taxa de juro e não é paradoxal a circunstância do recente pacote habitacional do governo Lyula ter recebido entusiástico apoio dos banqueiros. Porque nesta terra, com cerca de 70% de excluídos, é natural que a maioria eleitoral apoie um governo que lhe deu subsídio para não entrar na fome, apesar de tal entrega do peixe não significar que os subsidiados tenham aprendido a pescar, através do mirífico desenvolvimento sustentado. Aliás, Lula não se cansa de proclamar que cerca de três milhões de brasileiros entraram na classe média, graças às medidas que tomou.

Já um terço da população, o grupo dos remediados, aqui dito da classe média, vai girando em torno do discurso das chamadas eleites, cujo dicionário discursivo nem sequer é ouvido pelo tal povão. Porque é neste grupo que se situam as tradicionais divergências de tucanos, PMDB, PT e outros mais, nomeadamente o partido que foi de Brizzola e tem como candidato à presidência o professor Cristóvão Buarque, antigo reitor da UNB, e que invoca o velho nacional-desenvolvimentismo, citando os antigos correlegionários Paulo Freire e Darcy Ribeiro.

Entretanto, esta dinâmica democracia constituiu , a aprtir da sociedade civil, uma plataforma de luta contra a corrupção que imediatamente emitiu uma cartilha de medidas práticas de denúncia contra a corrupção eleitoral, ao melhor estilo do que foram os códigos e associações de consumidores das décadas passadas.

E talvez não seja por acaso que por aqui há 20 milhões de seguidores da religião espírita, de Alain Kardec, aqui actualizada por Xico Xavier. Dizem até que o fenomeno está agora a penetrar em força na classe média e nas próprias eleites.

É por via destes paradoxos que poucos repararam na reunião cimeira do Brasil, Índia e África do Sul, aqui ocorrida há dias. Este símbolo de uma emergente realidade que pode levar ao estabelecimento de um novo processo de relações entre o Norte e o Sul, com estas três grandes potências a mobilizarem o tertium genum reunido em torno dop grupo dos vinte. Todos querem esquecer as Tormentas e assumir a Boa Esperança.

O Brasil tem a vantagem de se assumir como uma espécie de espelho do mundo inteiro, este cadinho de povos entre o Velho e o Novo Mundo, onde a fome de justiça que se manifesta pode ser o sinal de um amanhã pós-ideológico, sem os falsos messianismos que mercaram o sectarismo do século XX.