Da escatologia para uns minutos de filosofia do direito, tudo a favor do "sim"
Julgo não ter sido convidado para assistir à conferência de Al Gore, mas não tenho ido ao cacifo, porque estou retido em casa, a tentar dobrar as tormentas gripais. Daí que raros tenham sido os meus contactos com a agitação da cidade, apesar de ter recebido na caixa metálica das cartas em papel um lençol "infomail", dito "a vida concebida jamais será vencida", assinada por uma "Cruzada Internacional do Rosário de Fátima", onde, através de uma pretensa carta aberta, se pretende colonizar os nosso catolicismo com catolicismo exógenos, falsamente escatológicos e a que não vou responder, porque me faltam asas metafísicas para tanto. Basta espreitar o "site" para que remetem, onde qualquer observador pode confirmar como os católicos são hoje, no plano da acção política, um rebanho de muitas seitas, cerca de quinhentas, segundo os especialistas.
É evidente que não considero que os subscritores de tal carta aberta representem a maioria dos activistas do não, entre os quais incluo muitos não-católicos e muitos não-cristãos, não faltando até alguns destacados maçons. Mas quando a hierarquia da Igreja não denuncia estas minorias, fazendo as contas eleiçoeiras de os pretensos bons fins justificarem os maus meios, sou obrigado a reconhecer que esta campanha do referendo cometeu o pecado de nos fazer regressar a um ambiente de confusão entre a política e a religião, contribuindo para agravar a distância entre o eleitorado mais jovem e o eleitorado mais idoso, entre o eleitorado dito católico praticante e o situado noutras categorias, num estabelecimento de fronteiras que afecta esta nossa democracia, cuidadosamente edificada por um armistício entre católicos e maçons, desejosos de um não regresso à Primeira República ou ao Salazarentismo.
As feridas estão abertas e têm de cicratizar rapidamente, sob pena de termos que revogar a própria lei vigente sobre a IVG, de restaurarmos a protecção estadual quanto à proibição do divórcio para casamentos canónicos e outras fracturas. É também por isto que vou votar "sim" no próximo domingo. Para que se separe o que é de Deus e o que é de César, sem que a Deus, ou a César, pertença tudo, a fim de que o povo de Deus possa pertencer ao que pretende e o povo da República ao que quer, mesmo que a multiplicidade das pertenças individuais gere inúmeras coincidências que não devem ser remetidas para a inquisitorial regra do relaxamento ao braço secular.
Alguns dos defensores do "não", ao cederem ao finalismo, quase dizem o mesmo que o ministro hitleriano da justiça, no congresso do partido nazi realizado em Leipzig, em 1933, assinalava muito mais simplesmente que direito é tudo aquilo que for útil ao povo alemão, e injustiça tudo aquilo que for prejudicial ao povo alemão...
Também não andam longe do estalinista Vysinskij (1883-1954) que não se coibia de repetir o Manifesto Comunista de 1848 , considerando que o direito é o conjunto das regras de conduta que exprimem a vontade da classe dominante, legislativamente estabelecida, e ainda dos seus costumes e das regras de convivência sancionadas pelo poder estatal, e cuja aplicação é garantida pela força coerciva do Estado a fim de tutelar, sancionar e desenvolver as relações sociais e os ordenamentos úteis e convenientes para a classe dominante
Nos dois casos estamos perante aquele finalismo que, segundo o meu mestre Castanheira Neves, tende a substituir os valores pelos fins – uma pressuposta e comunitária contextual validade axiológica por um contingente finalismo político-social, a que também aderem os recentes neo-positivismos utilitaristas
Por mim, prefiro o clássico conceito de direito expresso por Ulpiano, é a ciência do justo e do injusto, tendo como pressuposto certas coisas divinas e certas coisas humanas (est divinarum atque humanarum rerum notitia... justi atque injusti scientia) .
E aqui importa recordar, sobretudo ao Conselho Superior da Magistratura, a existência, segundo os clássicos, de três espécies de saber. Há, em primeiro lugar, o saber puro que os gregos designavam por sophía e os romanos, por sapientia, o saber pelo saber.
Segue-se o saber-agir, que os gregos chamaram phronesis e os romanos prudentia, entendido como a praxis, como a ciência que tende para a acção, para o agir e, logo, para o honestum e que hoje tem paralelo nas ciências que tratam da realidade referida aos valores.
Finalmente, o saber-fazer, que os gregos chamaram tekne e os romanos ars, um saber realizável, uma técnica pura, um fazer do saber .
Daí que tenha de citar Sebastião Cruz, doutor em direito e sacerdote, que dentro de uma escala de autênticos valores humanos, a primeira espécie de saber é a Sapiência...; a segunda, a Prudência; a terceira, a Técnica . Porque nesta hora do poder das trevas do tecnicismo, em que intencional ou inconscientemente se desumaniza o Homem, para o reduzir a uma simples coisa, pretende-se que toda a gama do Saber se reduza à Técnica, ou pelo menos esteja dominado pela Técnica... A Técnica não é todo o Saber, embora na prática, geralmente, de momento, possa ao menos parecer ou até ser a mais útil; mas a utilidade não constitui o critério máximo da vida .
O direito não é a atitude que valora e toma os valores como critério (caso da filosofia), ou a atitude cega para todos os valores (caso das ciências da natureza), mas a atitude que refere os factos aos valores, como ensina Gustav Radbruch. É que estas três atitudes são, aliás, diferentes da atitude religiosa, superadora dos valores e da antítese valor-realidade.
Por isso, não concordo com missas de acção de graças antes da abertura solene do ano judicial, para dar um pouco de sobrenatural à administração da justiça, como dizia um sobrejuiz recentemente, talvez a copiar outras missinhas contra a evasão fiscal, num ambiente que fez Manuel Rodrigues dar uma volta no túmulo e São Tomás de Aquino ficar estupefacto lá no céu dos princípios laicistas que semeou na res publica christiana .
Até porque, como salienta mestre Radbruch, a filosofia não foi feita para nos dispensar de tomar uma decisão, senão para nos obrigar a tomá-la . Assim, o direito como ciência não se esgota na simples notícia das determinações legais, sistematizando-as num adequado catálogo, segundo as regras da lógica formal, exigindo o conhecimento dos princípios materiais e das conexões de sentido.
Se os princípios são generalizações de soluções de problemas – porque não é a partir das leis que nos vêm os princípios, mas sim a partir dos princípios que se geram as leis –, isso significa que os mesmos princípios são os verdadeiros factores da sistematização do direito, a qual vive sempre um processo circular que passa pela descoberta dos problemas, pela posterior formação dos princípios e, finalmente, pela consolidação sistemática, onde cada problema emergente obriga a um novo recomeço fecundante.
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