a Sobre o tempo que passa: A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Trabalha nas coisas perenes

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.2.07

A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Trabalha nas coisas perenes



Ao ler o jornal da minha santa terrinha, o diário da velha "alma mater", onde nasci e me formei, desde a escola primária ao 5º ano de licenciatura, fiquei a saber que D. Sebastião está prestes a desembarcar na universidade graças ao nevoeiro do espírito de Bolonha. Porque chegaram ao fim os “saberes colados com cuspo”, com a emergência de uma nova fórmula para a aprendizagem duradoura que passa por compreender conceitos, aplicando-os, e não por memorizar e por utilizar cábulas.

O povo ouviu e ficou maravilhado. Porque vamos, finalmente, passar da transição de um sistema de ensino baseado na transmissão do conhecimento – o actual – para um sistema baseado no desenvolvimento de competências. Porque «o conhecimento pode ser adquirido pesquisando, de modo a que fique», assim como realizando «trabalhos de campo, [logo] desde o primeiro ano» dos cursos, para que se saiba utilizar o que se aprende quando é preciso.



Por mim, que ando nisto da docência universitária desde 1976, se concordo com toda este discurso contra o ensino dito teórico, depois de viver experiências de avaliação contínua e do clássico processo das lições com lentes, isto é, com tipos que lêem o que não sabem, cheguei há muito à conclusão que todos os métodos são bons se houver bons alunos e bons professores e, consequentemente, boas escolas. E também tenho observado que não há piores escolas do que aquelas que, pintando-se com métodos bons, não têm bons professores nem bons alunos. Prefiro o peripatético e o problemático, tal como foi lançado na Academia de Platão e no Liceu de Aristóteles, conforme as propostas de renovação da ratio studiorum de John Dewey e António Sérgio.

Recordo-me de uma velha anedota coimbrã que definia as aulas como teoricamente práticas e praticamente teóricas e cito sempre aquele marechal brasileiro que, depois de distinguir a prática da teoria, concluía que, na prática, a teoria era outra.




Entre a teoria e a prática, apenas podemos observar, como Kant em 1793, se o que é verdadeiro em teoria também o é na prática. Porque se a prática é tanto melhor quanto mais prática; a teoria é tanto melhor quanto mais teórica, como replicava Vilfredo Pareto.

Também o nosso Fernando Pessoa considerava que toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria.



Porque nunca é demais reconhecer, como assinala Jürgen Habermas, que só pode orientar verdadeiramente a acção o conhecimento que se libertou dos simples interesses e se instalou nas ideias e que justamente adoptou uma atitude teórica.

Para Aristóteles, por exemplo, o campo da teoria era o do conhecimento puro cujo objecto tem um carácter necessário; já o campo da praxis, o da vida activa e das escolhas conscientes. Se na teoria não existe acaso nem probabilidade, mas sim necessidade, já as ciências da praxis, do agir,encontram os seus princípios não num objecto necessário, mas no dever ser da praxis. O objecto desta é, assim, a direcção do viver e, portanto, o objectivo é a acção e não o conhecimento puro. Isto é, na praxis, o comportamento humano não está pré-determinado e a escolha consciente da acção não se apresenta como uma dedução necessária.

A este respeito, Ortega y Gasset considera que a theoria, o theoretikòs biós dos gregos equivale à vita contemplativa dos romanos e ao nosso peninsular ensimesmamento.
Neste sentido, haveria três momentos diferentes que se repetem ciclicamente ao longo da história humana em formas cada vez mais complexas e densas: primeiro, o homem sente-se perdido, naufragando nas coisas; em segundo lugar , o homem, com enérgico esforço, recolhe-se à sua intimidade para formar ideias sobre as coisas e seu possível domínio...; em terceiro lugar o homem torna a submergir no mundo para actuar nele conforme um plano preconcebido; é a acção a vida activa, a praxis.

Considera também que não se pode falar de acção senão na medida em que esteja regida por uma prévia contemplação; e vice versa, o ensimesmamento não é senão um projectar a acção futura. Assim, salienta que o destino do homem é, portanto, primariamente a acção. Não vivemos para pensar, mas ao contrário: pensamos para conseguir perviver.



Isto é, se a teoria é necessariamente aprática, isso não a desliga da vida prática.Antes pelo contrário. Não há prática que não caia em ratoeiras retóricas nem ciência que não tenha derrapagens metafísicas... Ora, como salienta Pierre Bourdieu, uma prática científica que se esquece de se pôr a si mesma em causa não sabe, propriamente falando, o que faz .

O teórico, segundo a lição de Aristóteles, tem de assumir aquele estado de espírito que apenas pode ser atingido pelos que tentam pensar de modo racional e justo. Isto é, usando palavras de Eric Voegelin, o teórico, deve, ao menos, ser capaz de reproduzir imaginativamente as experiências que a sua teoria busca explicar. Em segundo lugar, a teoria como explicação só é inteligível para aqueles em que a explicação desperte experiências paralelas como base empírica para testar a base da teoria. Porque uma teoria não é apenas a emissão de uma opinião a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência, definindo o conteúdo de uma género definido de experiências.

Apenas repito o que outrora proclamei: um professor universitário é um funcionário da comunidade, um servus ministerialis, um escravo da função que lhe foi atribuída, mas que ele também professa, quando, para tanto, sente uma íntima vocação.

Não lhe cabe apenas dar aulas e produzir trabalhos de investigação. Não pode reduzir-se ao claustro das escolas onde exerce a actividade. Tem que procurar contribuir para a comunidade se pensar a si mesma, tentando que a universidade se aproxime da vida.

Mas não pode esperar que o poder instalado seja influenciado pelas suas reflexões. Nem ter a tentação de se transformar em "opinion maker".

Na universidade não se trabalha para o curto prazo, onde funciona o realismo neomaquiavélico. Porque pretende ascender-se ao estádio da ciência, do conhecimento, este tem de superar a mera opinião da conjuntura. Neste sentido, qualquer universitário deve assumir a coragem de estar em minoria.

A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Trabalha nas coisas perenes. Mas tem de reflectir a partir das circunstâncias do tempo e do espaço. Porque as essências apenas se realizam através da existência.

Licenciado nunca foi o penico do sôtôr, ou um burro carregado de livros, mas apenas o que recebeu pública licença para continuar a estudar por si mesmo. Transformar o primeiro grau do antigo bacharel num título profissional é contribuir para o desemprego, diminuir o défice orçamental, desinvestir no ensino público e alindar as estatísticas.