a Sobre o tempo que passa: Das ciências ocultas aos sermões no deserto, sem peixinhos à vista da costa

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.3.07

Das ciências ocultas aos sermões no deserto, sem peixinhos à vista da costa

As cenas da Universidade Independente não me escandalizam, porque coisas dessas aconteceram, acontecem e hão-de continuar a acontecer em estabelecimentos públicos de ensino superior, enquanto a luta de invejas mover homens e mulheres, ou a vaidade continuar a ser o motivo superior de outras lutas, neste castífero e capitaleiro país de sô-tôres, onde o tropa substituiu o nobre e o bacharel ocupou o lugar do clero, julgando que a universidade poderia continuar a ser uma fábrica de títulos de desigualdade, e a cultura, um funil pós-graduado de sinais distintivos de inteligência, através de clubes de citações mútuas, com reservado direito de admissão. Os nobres, hoje, não passam de meros filhos de algo e os inteligentes servem para as garraiadas em centros comerciais.

Não vou comentar arouquices e verdices, bastou-me passar os olhos pelos anunciados novos professores da coisa e pela técnica habitual dos ditos reitores, no sentido do recrutamento de figuras mediáticas e partidocráticas de largo espectro, nesse baralhar e tornar a dar em que são mestres os pescadores à linha nos passos perdidos, nos políticos desempregados e nos colunistas consagrados pela cunha. Passem os olhos pelo corpo docente das privadas de direita e por lá detectarão professores convidados de esquerda e extrema-esquerda e pesquisem o universo das privadas ditas de esquerda e tudo detectarão como vice-versa, nos habituais curtos-circuitos desse "o que parece, é", agora actualizado pela versão "jet set", onde "o que aparece é que é".

Nos tempos de crepúsculo da Moderna, pescaram nomes como Portas e Santana, feitos directores de centros de sondagens, pouco preocupados com os "curricula" sociologistas e os manuais de metodologias das ciências sociais, tal como privadas de sucesso podem exibir ilustres deputados de todas as bancadas, especialmente no ramo do que vem sendo qualificado, muito justamente, como de ciências ocultas. E tudo acontece porque o mercado da procura da doutorice ainda continua confundido com o brilho dos galões e pelo mito da ascensão social, num sistema bastante parecido com a chamada criação artificial de necessidades da publicidade enganosa.

Ainda ontem, quando um jovem ex-aluno e recém-licenciado me pedia conselho sobre uma universidade europeia onde se pós-graduar, eu o aconselhava a visitar a Internet para pesquisar as suas preferências num desses países de dimensão média, como o nosso. Ficou espantado quando eu lhe disse que, em áreas da ciência política, das relações internacionais e da estratégia, cada um deles teria um ou outro centro universitário de excelência, porque são bem mais pobres do que nós...

Cá, neste jardim à beira do delírio situado, não há um, mas mais de uma dezena, apesar de serem bem menos os profissionais da coisa, devida e comparativamente graduados. O que por cá abundam são os "lentes" de fotocópias importadas, as promessas sexagenárias e sessentonas que nunca conseguiram "obra" nem "prima" e os investigadores de pacotilha que metem cunha a um desses avaliadores de escolha de café ou de clubes de amigos, neste continuado Portugal dos Pequeninos com a mania das grandezas.

Pouco me importaria que tal sucedesse no âmbito de empresas que visam o lucro, mas muito me incomoda continuar a assistir à manutenção dessa mentalidade suicida a nível de inúmeros segmentos do ensino público, onde as más privatizações se sucedem, às vezes com os mesmos protagonistas que levaram as privadas à falência, mas onde continua impune o reino da demagogia e da falta de respeito à palavra dada.

Se um qualquer ministro da área quisesse acabar com a bagunça, bastaria que reunisse durante um fim de semana, uma dezena de conselheiros do sector, com provas dadas e sem ambições de carreira, isto é, que fossem homens já livres e libertos. Estou convencido que contribuiriam imenso para a redução do défice orçamental e para a não publicidade enganosa que continua a fintar a ingenuidade das famílias. Por mim, optaria inequivocamente pela concentração de esforços, juntando a presente dispersão, provocada pelas vaidades, em um ou dois centros de excelência, capazes de capacidade concorrencial com entidades europeias de países de dimensão média, como o nosso.

Até me permitiria sugerir que ligássemos outras pontas, com a de certos ministérios como os da defesa e dos negócios estrangeiros, para apostarmos naquilo que sempre foi o segredo da gestão de recursos escassos e retomando modelos de formação de uma forte elite nacional, com consciência nacional e algum patriotismo científico.

Deve ser porque sou docente catedrático da Universidade Técnica de Lisboa que, desde os alvores do século XX, deu o exemplo de conciliar os cérebros, fazendo coincidir os peritos dos ministérios com a função docente e o lançamento de investigações aplicadas que nos deram plantações de vinhas, fábricas de leite, comércio externo, pontes e calçadas, administrações coloniais, estratégia, política externa ou integração europeia, para não falarmos nos centros de estudos que havia nos partidos no período de refundação desta democracia.


A terceiromundialização em curso, ao esfacelar recursos e ao fomentar vaidades sem conteúdo, com promessas que ninguém vai cumprir, é simplesmente desastrosa e contrária ao que é praticado por países tão pobres como os Estados Unidos da América, a França ou o Reino Unido. E pedirmos a engenheirais doutorices que escolham o que lhes parece ser a qualidade de áreas científicas onde não navegam talvez constitua um desses erros que vão afectar gerações inteiras, nesse lavar as mãos como Pilatos na pilotagem do futuro, pelos que não têm a autoridade que vem de autor nem simples competência em razão da matéria.

Por mim, apenas continuarei nesta pregação no deserto, sabendo que os cães continuarão a ladrar e que também continuaremos a ser deserto, susceptível de ocupação pelas caravanas dos outros, mesmo quando, neste blogue, vou fingindo o exercício de sermões aos peixinhos que já não vêm à vista da costa. Há cada vez menos autores de sermões que não queiram ser mais do que aquilo que são, ou que não dependam de barganhas eleitorais para a conquista dos pequenos poderes. E mais não posso dizer, daqui a bocado estou obrigado a ir a uma sessão desses intermináveis conselhos ditos científicos, onde nos esgotamos em discussão de vírgulas da acta da sessão anterior e na distribuição de docentíssimos para cadeirões, sem repararmos que os turcos não discutem o sexo dos anjos.