a Sobre o tempo que passa: Navegar é preciso, viver habitualmente já não é preciso

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.3.07

Navegar é preciso, viver habitualmente já não é preciso

Com mais quatro horas de fuso, neste começo da manhã na Guanabara, depois de dar a última volta ao texto da minha conferência de amanhã, vou ceder ao impulso lírico que a travessia do oceano moreno me provoca, neste voltar à procura do paraíso, nestes sucessivos sonhos por cumpriri que me dão a espera, a esperança e a esfera do abraço armilar. Assim decidi comemorar o cinquentenário do Tratado de Roma, protestando silenciosamente com a retórica habitual dos discursos de justificação do poder, especialmente quando elas atingem as raias do propagandismo exacerbado. Felizmente que ainda não consideram crime de traição à pátria o não sufragarmos o programa de criação de uma constituição europeia, ou não elogiarmos gongoricamente o nosso comissário em Bruxelas.

Atravessando a zona da turbulência, continuo a peregrinar por estes Estados Unidos da Saudade, onde bem gostaria de restaurar o Reino Unido. Porque a curiosidade do vale mais experimentá-lo do que julgá-lo me leva à constante investigação no terreno e no laboratório da história, tal como a angústia me provoca a procura de teorias, neste quase beneditino diarismo que me obriga a pensar para os outros, neste todos os dias me escrever e rescrever, também através deste blogue.

Nesta terra onde Lula se pinta de Getúlio Vargas, comparo a diferença que temos, quando a RTP, para comemorar outros cinquenta anos, permitiu que Sua Excelência, o ex-Presidente do Conselho, nos voltasse a zurzir em preto e branco. Porque, até domingo, tudo isso era apenas anormal por ter sido decretado como tal pela literatura de justificação do poder estabelecido.

Eu, pelo menos, fiquei feliz por Salazar entrar na moda que passa de moda e ser novo apenas porque o tínhamos esquecido. Quando o nosso politicamente correcto o passa a elogiar, sinto que tenho mais legitimidade para o zurzir, como desabrido opositor até do próprio post-mortem.

Mas nada estranho desse quebrar de tabu, quanto ao reconhecimento de um estilo do homem político, dado que o actual momento psicológico da pátria, ao colocar no pódio tal personalidade, tem muitas coincidências com a vaga de fundo que elegeu o actual locatário de Belém, assim elevando a normalidade o profundo desejo de salazarismo democrático que nos enreda.

E muitas culpas tem certa historiografia oficiosa dita antifascista, que, até agora, apenas eleogiava do regime defunto certos ministros que eram tios ou patrocinadores académicos dos biógrafos dominantes.

É por isso que peregrino em sonho por esta terra feita por muitos portugueses à solta, livres dessa casta capitaleira que continua a controlar o estado a que chegámos. Navegar é preciso, viver habitualmente já não é preciso.