a Sobre o tempo que passa: O regime dos emplastros

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.3.07

O regime dos emplastros



Dia a dia que passa, sem espaço de exílio externo, mas também sem causas cívicas que me mobilizem institucionalmente, vou sobrevivendo e submetendo-me a estas circunstâncias, cada vez mais desterrado na minha própria pátria. Mas, todos os dias, confirmo que não estou sozinho, aqui e agora, apesar de sentir que a maioria dos meus concidadãos, prefere a segurança e o bem-estar dos remediadamente conformistas, a qualquer aventura da liberdade.

Sinto-me um pouco naquele ambiente decadentista dos "anciens régimes" que, em Portugal, costumam durar décadas, como aconteceu no crepúsculo da monarquia liberal, nos anos vinte da república velha ou na fase pós-delgadista do salazarismo. Recordo-me até da primeira causa cívica que assumi em artigos de jornais, quando, adolescente, defendi, em carta assinada, no jornal da terra, o velho "Diário de Coimbra", uma mudança de horários contra os interesses de uma concessionária dos transportes públicos. Então, uma minha conhecida, cidadã de meia-idade, apoiante do regime, logo me veio admoestar porque muita sorte tinham os pobrezinhos de terem oferta de transportes públicos, em vez de andarem a pé ou de bicicleta...

Hoje, parafraseando Belmiro de Azevedo, quem não é por Cavaco ou por Sócrates ou é incompetente ou maluquinho. Logo, corre o risco de ir para a bolsa dos supranumerários ou de ser internado no pelourinho dos inconvenientes que não dizem "sim senhor" a estas ilustres vontades de modernização da pátria.

Pouco mudámos nesta servidão voluntária, desde que surgiram os profissionais da contestação ou os canalizadores do protesto institucional, a que chamam partidos da oposição, cheios de antigos ministros da mesma situação de um permanente bloco central de interesses, a que hoje se chama coabitação em regime de cooperação estratégica. Basta olharmos uma desssas visitas de presidente ou chefe de governo a inaugurações de província, mesmo que fiquem em plena capital.

Nada melhor, para confirmarmos como vivemos em regime de emplastros, que numa dessas imagens de telejornal, verificarmos o que acontece quando Cavaco ou Sócrates têm que mandar umas bocas para o país através da camâra e do microfone. É vermos o ridículo de ministros e outras figuras do estadão se empurarrem todos, para ver se cabem no écran, encostando as cabecinhas ao microfone do chefe, só para aparecerem no boneco. Porque em política o que aparece é o que é.

Somos cada vez mais um regime de emplastros, onde cada chefezinho e cada subchefe da mão longa do estadão decidiram copiar suas altezas, com um gabinete de relações públicas e um assessor de comunicação e imagem, normalmente um desses jornalistas desempregados que consegue colocar uma notícia ou uma entrevista numa dessas folhas de couve que ninguém lê, mas o gabinete fotocopia e distribui, dando cinco minutos de fama ao vaidoso emplastro.

É pena que alguns não tenham o dom da palavra ou da carantona televisionável. E pior ainda é quando, assumindo a função de emplastro, não reparam como são baixinhos, pançudos, carecas ou coxinhos, levando a que meio povo se questione sobre quem é aquela alimária que anda aos empurrões atrás de Sua Excelência, só para furar o telejornal. É que os assessores pagos ter-lhe-ão dito como gostaram de vê-lo nessa manifestação de massas desta permanente sociedade de corte e até os familiares e as secretárias de função acabaram por lhe afagar o ego, sem lhe dizerem da triste figura que ele fez.

Neste regime de emplastros parece agora ter chegado a moda de suas excelências ministeriais fazerem blogues, não por causa da blogosfera, mas para que os jornais do dia publiquem duas páginas de reportagem sobre a matéria, a fim de confirmarem que a dita personalidade sabe usar os efeitos do choque tecnológico, neste "big brother" de uma crescente gargalhada, onde os sábios gestores do poder vão, de sondagem crescente em sondagem crescente, até ao tabu, ao pantanal ou a um convite para funções mais importantes, deixando os "saloios" a ter que gramar os emplastros.

Basta que um qualquer chefe da grande Europa mostre, ao presidente ou ao primeiro-ministro, os relatórios sobre negociatas e as escandaleiras que os adidos das embaixadas elaboraram, quando descreveram os nossos meandros dos passos perdidos à beira do poder.

Por outras palavras, estou cada vez mais do contra. Contra os que estão e até contra os que dizem que são do contra, de Zés Ribeiros a Marques Mendes, ou de Portas e Monteiro a Pedro Santana Lopes, nesses bailados de bonzos, canhotos e endireitas, onde todos vão explorando a nossa revolta, para reforço dos micro-autoritarismos subestais que se alimentam das sociedades de corte e das servidões voluntárias. Infelizmente, já não há revistas de "Homens Livres", entre a "Seara Nova" e a "Nação Portuguesa", nem um qualquer "Album das Glórias" que nos retrate. Já não somos quem sempre fomos, à espera de uma revolução, de uma "maria da fonte" ou de um "vinte oito de maio".

Eu preferia fazer um golpe de Estado sem efusão de sangue, através de eleições, mas, infelizmente, não tenho partido onde militar. Já me enganei algumas vezes e tive que sair a tempo, para poder continuar a viver como penso, sem pensar muito como assim tenho de viver. Pior ainda, já nem na universidade posso dizer que há lugar para o pensamento livre, dado que o estadão, os emplastros e a partidocracia estão a dar cabo dela.