a Sobre o tempo que passa: Cartesianas reflexões contra quem não tem dúvidas e raramente se engana, com tiro de Alcochete no campo da Ota

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

12.6.07

Cartesianas reflexões contra quem não tem dúvidas e raramente se engana, com tiro de Alcochete no campo da Ota




Depois de tantos desertos e do presidencial conselho, a governança do estadão diz, de forma anticavaquista, que agora tem dúvidas e que pode ter-se enganado, tratando de encomendar um honesto estudo comparativo ao serviço público mais habilitado para o efeito, que não a Procuradoria-Geral da República, na sua secção de luta contra os apitos dourados.

Os cartesianos seis meses que quase acompanham a presidência portuguesa da União Europeia serão tempo de espera para aterrarmos no bom senso, mas onde Mariano Gago ameaça tirar o veto de gaveta ao despacho sobre a UnI, ou vetar-nos a todos com as pombalices engenheirais da sua concepção de ensino superior, antes de ser substituído por uma qualquer margarida moreira, para termos que ler notáveis editoriais de Fernanda Câncio, em nome da liberdade de expressão de pensamento.


O tal "cataclismo" pode facilmente resumir-se nos quatro preceitos do método analítico e da decomposição pela reflexão estabelecidos por Descartes, o autor do Discours de la Méthode pour bien conduire sa raison et chercher la verité dans la science, de 1637:

"Jamais receber por verdadeira coisa alguma que eu não conhecesse evidentemente como tal" (a chamada regra da evidência);

"Dividir cada uma das dificuldades ... em tantas parcelas quanto ... possível ... para melhor as resolver" (regra da análise);

"Conduzir por ordem os ... pensamentos , começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como que por degraus, até ao conhecimento dos mais complexos, e supondo a existência de ordem entre aqueles que não se sucedem naturalmente uns aos outros" (regra da síntese);

"Fazer sempre enumerações completas e revisões tão gerais que se fique seguro de nada omitir" (regra da verificação).

Estes são com efeito os principais mandamentos daquilo que Bernard Roger qualifica como "o marxismo da burguesia, o instrumento teórico da sua conquista do poder e da sua luta contra a aristocracia".

Agradeço à CIP e ao seu impulsionador Van Zeller a redescoberta da técnica do ovo de Colombo, num plágio à petição apresentada ao parlamento por Manuel Monteiro. Mas fiquei a saber que a associação patronal assume a dimensão de sociedade discreta, passível de um furibundo artigo do bispo resignatário D. Marcelino, porque o patrão dos patrões veio à televisão proclamar que nunca se saberá quem fez e quem pagou o estudo que deu um tiro de Alcochete no campo da Ota, nessa luta contra a desertificação da margem sul. Por mim, continuo em outra banda, sem ter numa mão a espada e na outra o báculo, conforme a hobbesiana imagem do Leviathan. Apenas uso pena e teclas contra o tilintar dos punhais da traição, com que muitos bácoros e bufos se embebedam.

Não assino o jornal Correio do Vouga e nem acredito que Mariano Gago siga o paradigma Mário Lino, isto é, que leia Descartes e deixe de ser metodologicamente cavaquista.
Esperemos que Van Zeller encomende à sua comissão discreta novo estudo, para que um laboratório nacional de universitarice civil tenha a coragem de dar um tiro nos preconceitos reformistas, sem anedotas sobre inglês técnico.

Reparo apenas que o je pense, donc je suis constitui o ponto de partida para os chamados temps modernes, a partir dos quais se assiste a uma série de de tentativas destinadas a levar a filosofia a desempenhar o mesmo papel e a mesma função cultural que, na Idade Média, cabiam à fé e à teologia. Começa, então, a caminhar-se para uma espécie de morte de Deus ou de desdivinização do mundo, visando tentar-se a ocupação da cúpula da humanidade, esse vértice integrador do próprio conhecimento.

Só que, depois dessa "morte" , talvez tenha sucedido um infinito vazio que, desde então, temos tentado preencher frustradamente. Sozinhos, diante nós mesmos, ensimesmados, eis-nos presos nas teias de uma solidão cósmica, que a razão, em si mesma, não consegue compensar nem preencher. Com efeito, como observa Darlu, "sempre que reflectimos sobre as coisas, o nosso pensamento tem o seu centro na nossa consciência individual (é o cogito cartesiano), o nosso humilde pensamento toma a medida do mundo; a nossa pequena vontade acrescenta o ser à realidade onde está inserida. Não somos senão um fio na tela imensa que se balança ao vento e, contudo, sentimos o movimento do conjunto e sabemos afrouxá-lo ou acelerá-lo".