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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.6.07

Devorados pelo decretino e incinerados pelo socratino, restam as proféticas vozes que clamam no deserto




Não tenho dúvidas: depois da reforma de Gago, chegou a hora de poder haver efectivos investimentos da sociedade civil internacional no ensino superior português, longe do negocismo decadentista que marca os restos de universidades privadas, filhas da crise da extinta Universidade Livre. Porque o sector estatizado da nossa universidade, onde o quantitativo vai destruir o qualitativo multissecular, devorado pelo decretino e incinerado pelo socratino, passará a deserto, susceptível de ocupação pela racionalidade importada. Por mim, estou disponível para activista de quem venha por bem, mesmo que sejam os habituais grupos da geofinança que nos qualificam como província (de pro mais vincere), isto é, como terra do tal veni, vidi, vinci, feita res nullius pelos actuais partidocratas, alguns dos quais nos governam.

Com efeito, dizem os jornais que o socratismo, depois da abandonar a Ota, vai voltar o seu ímpeto reformista co-incinerador para as universidades, pondo a arder o CRUP, a fim de levar representantes da sociedade civil, ditos notáveis, ao governo das velhas e antiquadas instituições. É por isso que decidi reparar nas recentes declarações do nosso Prémio Nobel da literatura, para quem a esquerda actual “deixou de ser esquerda” e tornou-se “estúpida”, acusando também os governos de estarem a tornar-se em “comissários do poder económico”. Porque “já não há governos socialistas, ainda que tenham esse nome os partidos que estão no poder”,a respeito de executivos como o português e o italiano, citado pela agência EFE no último dia da conferência “Lições e Mestres”, em Santilhana del Mar, no Norte de Espanha.

“Antes gostávamos de dizer que a direita era estúpida, mas hoje em dia não conheço nada mais estúpido que a esquerda”, adiantou o octogenário escritor e militante histórico do Partido Comunista Português. Fugindo ao tema literário, Saramago acabou por dedicar grande parte da sua intervenção aos problemas das democracias contemporâneas, que na sua opinião não passam de “plutocracias”, e apelou à insubmissão da população, segundo relata a agência espanhola. “O mundo é dirigido por organismos que não são democráticos, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio”, acusou. Para Saramago, “é altura de protestar, porque se nos deixamos levar pelos poderes que nos governam e não fazemos nada por contestá-los, pode dizer-se que merecemos o que temos”. Estamos a chegar ao fim de uma civilização e aproximam-se tempos de obscuridade, o fascismo pode regressar; já não há muito tempo para mudar o mundo”, afirmou José Saramago.

E de pouco vale o discurso do Professor Avelãs Nunes, actual vice-reitor da veneranda universidade onde me formei, que li no "Diário de Coimbra", se o mesmo não for glosado pelo blogue do também meu antigo Professor Vital Moreira, porque, dos antigos cunhalistas, não chegam a Sócrates os clamores dos que só sabem que nada sabem, mas os que sejam do simplex. Daí que apele à CIP e a Belém, para que seja encomendado novo estudo de anónimos investigadores e mais anónimos fundos, a fim de que não enfiemos o barrete verde, onde devia estar a boina basca da resistência à portuguesa, com o adequado gesto do Zé Povinho.

Apenas acrescento que entre a CIP e o conceito de sociedade civil da esquerda analisada por Saramago, há aquilo que muitos anglo-americanos qualificam com neocorporatism, isto é, um especial processo sócio-político distinto do pluralismo, em que os grupos de interesse voltam a ser uma espécie de corpos intermediários entre a comunidade e o aparelho de Estado, constituindo organizações quase monolíticas, em número limitado, onde, contrariamente ao pluralismo, no qual as organizações são rivais, é o centro do aparelho de poder estadual, incluindo a presidência da república, a decretar quais são as associações representativas, independentemente da autenticidade associativa das mesmas. No fundo, trata-se de uma degenerescência do pluralismo e constitui um fenómeno pós-capitalista em que existe uma economia privada, mas não uma economia de mercado.


Já não estamos no tempo de Schlotzer, com a distinção entre Staat e burgerliche Gesellschaft, ou de Robert von Mohl, com a separação entre ciência social, estudando o Sozialstund, e a ciência política, estudando o Staat. Já não serve a perspectiva hegeliana de sociedade civil: a sociedade dos particulares ou a sociedade dos burgueses, onde domina uma ideia de Estado privado de eticidade, ou de Estado Externo, nessa segunda fase no processo de desenvolvimento do Weltgeist, depois da sociedade natural (a família) e antes da sociedade política, ou Estado, já constituída por cidadãos.

Já também pouco interessa o programa de extinção do Estado do anarquismo e no socialismo, ou a ideia de comunismo e de sociedade sem classes, onde Karl Marx e Friedrich Engels consideravam a sociedade civil como sociedade de classes. Porque, se em Hegel a sociedade civil tende a fazer parte do Estado, já Marx a considera como o fundamento efectivo do Estado, definindo-a como o conjunto das relações materiais dos indivíduos no interior de um estádio de desenvolvimento determinado das forças produtivas.

Nem sequer nos vale o neomarxismo de Antonio Gramsci, onde a sociedade civil aparece como o conjunto dos organismos vulgarmente dito privados que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade, e o Estado, como conjugação da sociedade civil e da sociedade política, a hegemonia couraçada pela coerção.

Se as vulgarizações neo-liberais adoptam o separatismo Estado/Sociedade Civil, retomando as perspectivas dos fisiocratas e do liberalismo escocês, também a sociologia histórica de inspiração funcionalista, assumida por R. Bendix, considera a sociedade civil como todas as instituições nas quais os indivíduos podem seguir interesses comuns sem a direcção ou a interferência do governo. Neste sentido, os neo-liberais reclamam a libertação da sociedade civil, reduzindo o Estado a agência de protecção que detém o monopólio do uso da força.

No âmbito das traduções em calão que marcam os nossos notáveis governamentais, ledores de revistas compradas nas viagens de avioneta, talvez baste o conceito britânico de government e o conceito norte-americano de administration, que transparece da respectiva cultura de jet set. Isto é, a visão do Estado enquanto mera agência especializada nos interesses do todo, do Estado como processo e não como coisa.



Logo, importaria que, entre o caso da Ota e o da reforma de Mariano Gago, com passagem pelo caso Pinto da Costa em choque com o casal-maravilha, se fizesse um simples estudo dos grupos de interesse e dos grupos de pressão, onde se coloca apenas o problema da regulamentação da actividade dos lobbies, tanto no plano intra-estadual, como no domínio das relações internacionais, no âmbito da chamada sociedade civil internacional. Vive-se, com efeito, o abandono do anterior general good sense com a introdução de formalized rules, nomeadamente com a introdução do registo de interesses dos parlamentares e com o estabelecimento de regimes de incompatibilidades.

No mesmo sentido, teria sido fundamental o inventário das formas de controlo da pantouflage, nomeadamente com o estabelecimento de regras sobre o emprego dos membros do governo, depois de os mesmos abandonarem as funções políticas, vegetando nas reformas e aposentadorias acumuláveis, ou metendo cunha para assessorias na banca.

Perceberíamos assim o que é um real grupo de pressão, isto é, um grupo de interesse que exerce uma pressão, que passa do mero estádio da articulação e da agregação de interesses e trata de influenciar e pressionar o decisor político, saindo do âmbito do mero sistema social e passando a actuar no interior do sistema político. Onde a pressão pode ser aberta ou oculta, pode actuar directamente sobre o decisor ou, indirectamente, actuando sobre a opinião pública.

Entre as pressões abertas, destaca-se a acção de informação, a de consulta, bem como a própria ameaça. As duas principais formas de pressão oculta, isto é, não publicitada, são as relações privadas e a corrupção. As relações privadas passam pelo clientelismo, pelo nepotismo e pela pantouflage. A corrupção, como processo de compra de poder, tanto pode ser individual como colectiva, nomeadamente pelo financiamento dos partidos. Entre as acções dos grupos de pressão sobre a opinião pública, temos tanto o constrangimento como a persuasão. Na primeira, temos a greve, as manifestações, os boicotes ou os cortes de vias de comunicação. A persuasão tem sobretudo a ver com a propaganda e a informação.

É por isso que somos um deserto. É por isso que subscrevo Saramago, mesmo quando estou prestes a entrar num conselho científico presidido pelo meu colega António Sousa Lara, onde irei discutir o sexo dos anjos, tal como há duas semanas, no Senado da minha universidade, andei a discutir o sexo dos deuses. Logo, apenas posso concluir que as nossas classes políticas, dependentes das teias do neocorporatism, apenas servem para dar vida a partidos que são alvarás de certificação dos agentes dos grupos de interesse e dos grupos de pressão, para que os actuais detentores do poder, quando forem despedidos pela opinião pública, se transformem em assessores e adjuntos dos reais patrões desse neofeudalismo dominante na presente anarquia ordenada.

Repito: não tenho dúvidas: depois da reforma de Gago, chegou a hora de poder haver efectivos investimentos da sociedade civil internacional no ensino superior português, longe dos negocismo decadentista que marca os restos de universidades privadas, filhas da crise da extinta Universidade Livre. Porque o sector estatizado da nossa universidade, onde o quantitativo vai destruir o qualitativo multissecular, devorado pelo decretino e incinerado pelo socratino, passará a deserto, susceptível de ocupação pela racionalidade importada. Por mim, estou disponível para activista de quem venha por bem, mesmo que sejam os habituais grupos da geofinança que nos qualificam como província (de pro mais vincere), isto é, como terra do tal veni, vidi, vinci, feita res nullius pelos actuais partidocratas, alguns dos quais nos governam.