Contra os regimes que dependem de uma constipação mal tratada, viva a roleta russa da democracia não iluminada...
Mais uma semana antes do Agosto que nunca mais chega, antes de não chegar ao fim a própria presidência da União Europeia, com tantas inaugurações de pontes que fazem Portugal mais pequeno, no bom sentido da expressão, mas também com outras tantas vaias monumentais às sete maravilhas do mundo do marketing e do share, antes de mais um discurso improvisado da senhora secretária adjunta de mais um adjunto, antes de um tal Jaime tecnosubsidiocrata das ingrícolas ameaçar os protestantes com a saída da UE, antes de qualquer correia mandar mais uma de caridadezinha medicamentosa contra os pobres que vão aos SAP, antes de mais um desses centros de saúde fechar ou ter mais um director de não confiança política a sanear, para gáudio dos boys e das cows...
Coitado do Sócrates e das suas congeminações de fim de semana, face a vários elementos de uma equipa governamental que entrou em desvario, com esta história do velho do rapaz e do burro, mais a do rei ir nu. Ao menos, Cavaco sempre vai às sete maravilhas e não é vaiado, ainda arranjando tempo para bater palmas aos Tabuleiros de Tomar, com aquelas heresias da pombinha do Espírito Santo e das memórias templárias, para sublinhar que se trata de um espectáculo democrático, porque o mordomo das festas é escolhido directamente pelo povo, assim confirmando que houve e haverá democracia se as festas de Tomar continuarem, como aconteceu durante a própria Ditadura.
Nos intervalos de excelência, Guterres sempre pode dizer que "o referendo em 27 países sobre uma questão europeia, qualquer que ela seja, se transforma inevitavelmente, no plano político, numa espécie de roleta russa", defendendo que a "Europa tem de encontrar outras formas de expressão da opinião pública".
Pois é! A democracia que funciona bem para a escolha do mordomo das festas, quando me escolhem a mim para mordomo, é uma roleta russa quando a pistola da opinião pública dispara contra mim, isto é, quando o feitiço se volta contra o feiticeiro.
Que o digam as recentes confidências de Jaime Silva ao JN: "Só sabia que (Sócrates) tinha uma personalidade forte. E que tinha na cabeça uma reforma para fazer". Agora, assegura: "Depois de uma decisão, não é preciso mais conversa. É só levar para a frente. O primeiro-ministro está muito em cima dos ministros, tanto para apoiar como para exigir". E sobre a atitude do Presidente da República, sublinha "os sinais, quando vêm de Belém chegam depois do Governo já ter agido. Na maior parte dos casos".
Os principais culpados da presente crise são, aliás, os agentes da liberdade de expressão: "Penso muitas vezes que quando a imprensa está perante um caso humano, tende a olhar só para um dos lados", lamenta o governante."Mas não nos deixam explicar" até porque há "comentadores com ar de que são os papas da democracia portuguesa", que acusa de quererem "fazer crer que vem aí a censura e a arrogância".
Estamos esclarecidos, iluminados, auditados e explicados. Sócrates não seria vaiado se os sinais de fumo de Belém chegassem antes das decisões, se a imprensa não olhasse para os casos humanos, se deixassem os ministros explicar até à exaustão as respectivas reformas e se não houvesse comentadores que denunciassem a censura e a arrogância, mas tecessem loas à personalidade forte de Sócrates que está acima, que decide, que quer levar para a frente e que tem na cabeça uma reforma para fazer.
Por outras palavras, todos seríamos felizes e contentes, todos iríamos para a frente, se regressássemos ao iluminismo, isto é, se nos deixássemos submeter pela reforma que Sócrates tem na cabeça, se transformássemos essa luz num despotismo com os seus intérpretes autorizados e com os seus ministros explicativos, aceitando que a democracia não mais teria opinião pública nem liberdade de expressão de comentadores críticos dos amanhãs que nos reformam e que um de nós tem na cabeça.
Aliás, o povo sempre continuaria a ter direito a escolher os seus mordomos para as festas de Tomar, coisa que vem do tempo de el-rei D. Dinis e que se manteve mesmo durante a ditadura salazarenta, quando o chefe de então também estava por cima, tinha uma personalidade forte, dizia ter uma reforma na cabeça e não gostava dos sinais de fumo que vinham de Belém.
O problema é que, por causa disso, todos ficámos dependentes de uma eventual constipação mal tratada, a qual acabou por ser não uma queda da cadeira, mas a tentava de assentar o rabo numa outra que, afinal, já lá não estava, quando Sua Excelência decidiu ler a imprensa censurada, onde não havia comentadores incómodos, num tempo em que nem sequer havia blogosfera e era tudo da pretensa causa nacional, que já não era monárquica nem republicana, mas do sim, senhor, manda quem pode, obedece quem deve.
Julgo que nesses tempos de despotismo esclarecido nem Paulo Portas tinha que se preocupar com submarinos, nem Marques Mendes teria que fazer o discurso de defesa de autarcas constituídos arguidos, porque ninguém iria investigar o "dossier" da Universidade Atlântica e os tiques e truques de autoritarismo que aí praticou um certo presidente da assembleia municipal de Oeiras, quando o presidente da autarquia ainda era seu aliado.
Neste sentido, até sou capaz de elogiar alguns governantes que não brincam em serviço e dizem o que pensam, porque têm uma ideia na cabeça: Precisamos é de misturar o Tagus Park com o Bairro Alto. Temos o Tagus Park (fora de Lisboa) com tudo muito formalizado, muito "high-tech" e, ao mesmo tempo, a criatividade do Bairro Alto (no centro antigo), completamente inorgânica. Se calhar, precisávamos do cruzamento das duas coisas. Precisamos de instituições mas, também, de informalidade.
A democracia é mesmo uma roleta russa: explode em liberdade contra a cabeça do feiticeiro, quando a opinião pública e publicada passa do oito ao oitenta e transforma os bestiais de ontem nas bestas do dia seguinte. Pombal, não voltes, não estás perdoado! Não quero ser mandado pelo serviço, sacrificio da reforma que o chefe tem na cabeça. Prefiro uma ideia de obra, manifestações de comunhão e regras do Estado de Direito, onde não é lei aquilo que o chefe diz e onde o chefe está submetido à própria lei que edita, como representante do povo.
<< Home