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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.10.07

De complexione quae fit concursu primae...ou mens agit molem



Um altíssimo dignitário da eurocracia, ex-comissão, ex-MNE de um pequeno Estado, o nosso, donde também foi ilustre ministro educativo e reitor de universidades, uma pública e outra privada, utilizando os axiomas da ciência exacta de que é especialista, veio decretar, do alto da suas circulações e tacadas cortesãs, que os referendos a tratados europeus não são democráticos, insinuando que quem está contra o acordo do Mar da Palha quer que Portugal abandone a União Europeia.






Recordo-me de uma conversa com ele tive, em grupo, quando ele nos comissionava em Bruxelas e não gostou das minhas provocações federalistas e nacionalistas, quase me alcunhando como tolinho que não conhecia as leis da Razão de Estado, isto é, do pensamento único e das modas que passam de moda, de que ele era, e é, um dos máximos representantes situacionistas. Na altura ainda não era do PPE, cavaquistava...






É verdade que qualquer constituição é tão complexa que sempre precisa de constitucionalistas e tribunais que possam decretar inconstitucionalidades, emitidas pelo poder. Tal como a democracia é tão complexa que há séculos a vamos teorizando, sem nunca chegarmos ao fim da história. Daí que também o seja o Estado de Direito, onde não vigora a regra segundo a qual "in claris non fiat interpretatio". Todas estas entidades, com efeito, não conseguem ser captadas pelos conceitos operacionais da ciência química. Porque esse objecto material chamado povo apenas se deixa compreender por uma complexa alquimia de conceitos empíricos e de conceitos abstractos, apenas nos deixando espaço para meros indicadores.


Para a democracia, sempre foi má conselheira a tolice da sofocracia, especialmente quando os pretensos sábios se decretam a si mesmos como aderentes a um clube de reservado direito de admissão. A democracia implica a complexidade crescente da cidadania e as repúblicas são melhores quando permitem um regime onde um mais um são mais do que a mera soma quantitativa das respectivas parcelas. Porque a mobilização da unidade e da diversidade pode fazer aumentar as forças, pela técnica do "e pluribus unum".






Quando um ministerial e reitoral catedrático de laboratoriais provetas nos quer dar música sobre o tratado do Mar da Palha, apenas podemos concluir que a respectiva palha propagandística é típica desses intermediários representativos que, ao assumirem-se como os monopolistas da voz da Europa e do nosso próprio futuro, deveriam ser despedidos por justa causa, porque o representado sempre foi superior ao representante. Os erros filhos da pauta podem dar origem a desagradáveis fífias.






Especialmente quando o representante procura, com silogismos, transformar os cidadãos em inferiores homens comuns, os tais que não podem aceder ao que qualifica como complexidade, mas que não passa de mero segredo da Razão de Estado, só porque alguns supranacionais políticos dizem deter os mecanismos da "inside information", nomeadamente por conversas e telefonemas que dizem manter com chefes de governo.


Porque nunca de forma tão despudoradamente antidemocrática tinha sido emitida esta opinião que decreta a "vox populi" como inimiga da "vox dei", prenunciando um projecto de governação de um rolo compressor, pelas pretensas elites que como tal se assumem só porque circulam provincianamente pelas corredores dos grandes deste mundo. Aliás, basta consultarmos um artigo publicado no D.E. por um consultar de Barroso, para ficarmos esmagados: quem defende os referendos é adepto de Hitler... (aliás, como Hitler também começou por ser eleito em democracia e se dizia o máximo representante do povo, para a construção de uma certa Europa, podemos dizer que todos os democratas, todos os povofílicos e todos os europeístas só não serão hitlerianos se obedecerem aos conselheiros que estão no poder de Bruxelas...).


Porque não parece que só alguns donos do poder invisível possam decretar como passíveis de punição herética todos os que duvidem da justeza da respectiva iluminação. Porque o povo, como um todo, institucionalmente posto em referendo, não pode ser algo de inferior aos representantes do todo, quando eles, depois de serem escolhidos para o cumprimento de um determinado programa, viram o bico ao prego.


Pelo menos, Sócrates ainda não disse tudo. Apenas argumentou que o respectivo compromisso eleitoral se baseou noutras circunstâncias. Resta saber se o "sic rebus, sic stantibus" o levará a concluir pelo habitual "lixem-se os dedos dos princípios, para que salvemos os anéis das negociações diplomáticas".


Os habituais adversários da democracia são precisamente os que consideram o povo incapaz de decidir altos assuntos do estadão, especialmente quando o mesmo povo pode não aceitar as regras do jogo da ditadura dos perguntadores de um referendo. Como se não estivesse em causa o destino da nossa casa comum, uma questão vital que não pode ficar dependente do clube de reservado direito de admissão, onde se sentaram certos tecnocratas disfarçados de políticos.


Não me parece que o antigo sucessor do Professor José Júlio Gonçalves na reitoria da Universidade Moderna tenha pergaminhos de formação académica que o habilitem para a condição técnica de internacionalista ou de constitucionalista. Ele apenas acedeu à tal complexidade do tratado do Mar da Palha como profissional da política, esse especialista de assuntos gerais que percebe de tudo um pouco, embora não tenha que perceber nada de nada. Não passa de mero homem comum elevado a representante de um povo pouco apto para questões complexas, mesmo que tenha passado a beber do fino, mas que não o exime de poder ouvir do grosso, dos tais homens comuns que, se têm o poder de sufrágio, não podem receber do eleito o arrogante do desprezo.