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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.7.08

Uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através da qual mesmo as almas mais fortes não conseguirão romper


Espantam-se alguns analistas já em férias, mesmo que não tenham comunicado às chefias onde fica o respectivo escritório, com a anunciada comunicação ao país do supremo magistrado da nação, sem guião prévio, a ocupar o horário dito nobre dos telejornais. Por mim, apenas espero que louve o lançamento do computador "Magalhães", com quinhentos mil cá, para os nossos infantes, e anunciadas encomendas de muitos mais milhões pela Líbia do Cadafeu, pela Venezuela do ti Hugo Chaves e pela Angola do Zedu. Mas segundo consta, Sua Excelência vai apenas desejar-nos menos pessimismo para com o principado.




Vai recordar-nos que o principado romano, que durou de 27 A. C.. ao ano de 284 d.C., surgiu quando os vários órgãos da República Romana instituíram Octávio como princeps civitatis, como o principal dos cidadãos. Ele, que já era cônsul, recebeu, depois, a tribunicia potestas a título vitalício — com os poderes correspondentes ao tribuno da plebe, nomeadamente o direito de veto sobre as deliberações dos outros magistrados — e o imperium — o poder de comandar o exército e de fiscalizar pessoalmente a administração de todas as províncias.




Não tarda que vá acrescentando uma série de outros títulos, como o de augustus, de pater patriae e até de imperator. A partir de então, o princeps constitui um novo tipo de magistratura que já não se enquadra na categoria das magistraturas republicanas, marcadas pela temporalidade, pluralidade e colegialidade. Pouco a pouco, se concentram nele o imperium dos magistrados republicanos, a auctoritas do Senado e a maiestas do populus.




Aliás, as próprias decisões do Senado, os senatus consulta, apesar de formalmente continuarem, transformam-se na repetição dos discursos do príncipe (orationes principis). Da mesma forma, os comitia do povo, se não foram abolidos, morrem por inactividade. Ao mesmo tempo, cria-se um corpo burocrático, directamente dependente do Príncipe, constituído pelos legati, pelos praefecti e pelos procuratores, bem como novos instrumentos orgânicos, como o Concilium Principis, depois transformado em Consistorium Principis, enquanto aquilo que era o tesouro da cidade (o aerarium) cede perante o fiscus (a fortuna pessoal do príncipe).


Com Diocleciano, em 284 d.C., o principado cede o lugar ao dominado, dado que o imperator passa a intitular-se dominus e deus, exigindo adoratio e considerando que o seu poder já não deriva da velha lex curiata de imperio, mas antes de uma investidura divina.




Claro que hoje já não é possível um Octávio, ou um Diocleciano. E qualquer eventual semelhança com a realidade não passa de pura coincidência com a anunciada invasão dos bárbaros e a queda da república e do império, através da queda dos anjos, incluindo os anjinhos papudos com cursos de gestão. O que pode surgir é, conforme previa Tocqueville, a eventual emergência de um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e doce provocado pela circunstância de sermos permanentemente solicitados por duas tendências opostas: sentirmos a necessidade de sermos dirigidos e o desejo de continuarmos livres.




O despotismo surge assim através de novos aspectos, nomeadamente quando o soberano estende os braços para abarcar a sociedade inteira, e cobre-a de uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através da qual mesmo os espíritos mais originais e as almas mais fortes não conseguirão romper para se distinguirem da multidão. Surge assim uma servidão, ordenada, calma e doce, uma espécie de compromisso entre o despotismo e a soberania do povo. Tocqueville referia o despotismo democrático e a tirania colectiva, considerados como o governo de um único que, à distância, tem sempre por efeito inevitável tornar os homens semelhantes entre si e mutuamente indiferentes à sua sorte.

Proclama que o indivíduo é o melhor juiz do seu próprio interesse, não tendo a sociedade o direito de intervir nas suas acções a não ser quando se sente lesada por elas ou quando tem necessidade do seu concurso e a dizer que só se conhece um processo para impedir que os homens se degradem: é o de não conceder a ninguém um poder absoluto, susceptível de nos envilecer, pelo que o processo mais eficaz, e talvez o único que resta, para interessar os homens pelo destino da sua pátria, é levá‑los a participar no Governo.