António Alçada Baptista. Um testemunho de M. Teresa Bracinha Vieira
A arbitrariedade, a tortura, o desrespeito pelas liberdades e direitos dos cidadãos, não são, afinal privilégios de uma qualquer polícia política. Não querida Teresa, só sentirás a verdadeira violência, aquela para a qual não há recurso nem agravo que liberte uma réstia de esperança, se acaso um amigo te abandonar e tu nele tiveres acreditado, ou, se acaso o teu companheiro te conseguir demonstrar o quanto relativo é o amor que por ti sente. Daqui a uns anos falaremos destes assuntos, disse-me o António Alçada Baptista há muitos anos atrás.
Ontem, faltavam-nos as palavras para falarmos da Casa de Sintra e da Casa de STª Catarina. A emoção dos trilhos suculentos torna-nos, às vezes, muito frágeis, face à capacidade de resistirmos ao tempo e dentro dele os sentires que se nos emaranham na alma, mas lúcidos, sim, lúcidos sempre.
Também o António quando me via mais calada, dizia-me:
- Estás a ver como tenho razão? Nos lançamentos dos teus livros nunca me esqueço de repetir: é a tal coisa, a mão direita da Teresa sabe mais do que ela. E digo e agora acrescento que umas vezes é a morte que nos leva antes de a gente falar, outras, é a morte que os leva sem nos terem ouvido. No livro “Um olhar à Nossa Volta”, digo isto a propósito do Manuel Vinhas. Já te tenho falado dele, lembras-te?
Sim, claro que me lembro. Julgo que nunca pequei por desatenção nos nossos imensos e repousantes e irrequietos diálogos. Digo mais, digo que, às vezes, tratava-se de auferir algo de momentos de puro ócio em que o espírito flúi sem regra ou sem eira nem beira, ao menos na possível aparência.
De novo, ontem, rimo-nos a propósito de um dia em que nos lembrámos de andar a dizer a uns companheiros de mesa de restaurante, o quanto ambos delirávamos não ter que fazer nada, no sentido de dar tempo à preguiça de ocupar o seu espaço e que depois e afinal a gente cansava-se imenso a convencer os outros disto.
Uma tarde, na outra banda, à beira-tejo e, enquanto imaginávamos qual seria o poema que o nosso querido Pedro Tamen iria ler no lançamento de um outro livro meu e deliciando-nos, antecipando o verdadeiro esplendor que o Pedro sempre coloca na declamação, dizia que, nessa tarde, passámos revista a tudo o que, analisando a vida, chamaríamos de pequena-história-grande-mestra. De repente, o António virou-se para mim e disse: isto de estar a ficar velho tem os seus quês e estou-me a lembrar de uma e antes que mudemos de assunto, digo-te que recordo um cartoon no qual estava escrito:
- Tu a étè staliniste en 1950!
- C’ est pás moi qui me suis trompé, c’est l’époque!
Também líamos muitas vezes em voz alta textos soltos de livros retirados sem escolha da estante e parávamos logo que uma palavra nos entusiasmasse e dela fazíamos a dissertação da tarde. Aliás, foi assim que comentámos os célebres “contra os canhões marchar, marchar”, que tanta polémica deu num dez de Junho recente quando o António deitou voz a propósito. Nesse dez de Junho à noite o António disse-me pelo telefone:
- Tanta contestação para quê? Até parece que só nós é que somos inteligentes.
E riu-se de jeito franco e solto, como só ele o sabe fazer quando comenta as estadas no Brasil na casa de Jorge Amado.
Ontem, o António Alçada pediu-me que abrisse, ao calhar, uma página do meu último livro e lhe lesse umas palavras. Assim fiz e li:
- Sim, eu tenho um cavalo negro e um cão que eu amo. Ambos parecem-se com anjos despenteados, não sei porquê, mesmo aos Domingos passeiam-se comigo assim. Julgo que foi a partir do dia em que num profundo soluço não aceitei ser socorrida.
E o António com a imensa ternura de sempre, mas quase a ralhar-me, disse-me:
- Por exclusão de qualquer outro dia, vemo-nos amanhã. Caminho para os 79 anos. Temos muito que falar.
Todas estas palavras ao longo deste texto se explicam tão só por uma razão: não encontro outras que ilustrem o agradecimento de alma que pretendia saber expressar ao António Alçada Baptista, pelo tempo que me dispensou e pelo tempo que me dá, pela superação de si que sempre me transmitiu, pela Amizade constante de lua cheia.
Assim eu pudesse moldar uma montanha verde no interior dos meus olhos e deles salpicasse um magma que me permitisse uma dedicatória de G. DUHAMEL, inteiramente a Alçada Baptista « Avalia a tua riqueza pelo valor do que dás», e permite-me que te diga, António:
- Assim saibas o quanto te devo.
É que eu sei, como muitas pessoas saberão, que sempre o seu coração falou e falará mais forte que o seu interesse. E também sei como esta pátria de fazedores de coisas pequeninas adquiriu o hábito de não enaltecer com a devida honra e vénia um Ser pensante de luz não submetida.
Assim chegassem estas palavras até lá onde…
M. Teresa Bracinha Vieira
Extracto de uma entrevista a António Alçada Baptista sobre o UNIVERSO DO FEMININO.
Por José Miguel Dentinho.
(…) Num jantar de homenagem, ao meu lado sentou-se uma escritora minha amiga. À frente, um banqueiro. A escritora falou-me do neto, do livro que ia escrever e de assuntos similares. O banqueiro interrompia-nos de vez em quando para contar « anedotas de aviário» sem piada nenhuma. Ali tive consciência nítida da diferença entre o masculino e o feminino.
« De facto da discussão não nasce a luz. Nasce muito mais da cooperação, da comunhão, do afecto. A Mulher tem essa reserva. Por isso é que eu tenho hoje grande dificuldade em falar com homens.
A nossa sociedade vive na cultura do masculino por causa do poder.
S. Francisco de Assis e Dante, Jesus Cristo ou, mais recentemente, Ghandi, eles tinham uma aproximação às pessoas e ao mundo que se não concretizava através do poder. A aproximação das mulheres ao poder fez-se através de um processo eminentemente masculino ( …) uma vez que pretendiam apoderar-se do poder à imagem e semelhança do homem e dos valores que este lhe imprimiu.
Gosto de referir Vitorino Nemésio. Ele era uma pessoa com quem não era possível ter uma relação de agressividade. Somente uma relação afectuosa.
(…) Aquilo que de mais importante aconteceu na minha vida foi a entrada da mulher na história.
(…) o homem tem uma cabeça muito simples, por isso tende para a especialização. E esta, como dizia Ortega e Gasset, “é o melhor aproveitamento da estupidez da sociedade. Qualquer estúpido pode, por exemplo, ser otorrinolaringologista e ficar enclausurado nos limites da sua profissão, fora do contacto com o resto do mundo. Eu tenho muita esperança na importância que as mulheres estão a dar ao diferente e que a natureza do poder se vá modificando à medida que as mulheres tomem consciência da sua natureza e das capacidades que possuem.
(…) mulheres como Simone Veil destacam-se pela diferença. Usam o poder no feminino.
O homem deve assumir sem vergonha o mundo dos afectos. Porque hoje acabou o poder absoluto e as pessoas têm muito mais poder, de muitas naturezas, a nível individual.
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