a Sobre o tempo que passa: Mateus Álvares ou a vontade de sermos independentes

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.1.09

Mateus Álvares ou a vontade de sermos independentes






Recebi hoje a edição destas actas. Tenho lá um prólogo com este título: Mateus Álvares ou a vontade de sermos independentes. Chegou-me hoje o livrinho da Mar das Letras da Ericeira e releio:

Quem conhece a longa história das nossas sucessivas frustrações colectivas, sabe como é doloroso confirmarmos que a presente democracia deixou de ser dos nobres pais-fundadores e caiu nas teias dos “filhos de algo”. A culpa talvez esteja em certo modo-de-ser daqueles portugueses que não são sonhadores activos, esses que procuraram o paraíso na expansão ou na emigração e que resistem no não retorno. Agora domina o enjoado inactivo e subsidiodependente, acirrado por certa lisonja encantatória de algumas facetas do PREC. Os mesmos que tanto repudiam o universalismo da nossa tradição de tolerância e temem que as chamadas minorias étnicas entrem, com eles, em concorrência face ao assistencialismo de um Estado que pretendia ser de bem-estar e que tende a ser, cada vez mais, de mal-estar.

É do alto destas falésias, entre ventos e marés, que normalmente me escrevo e rescrevo. E tendo sempre na memória uma das primeiras guerrilhas de libertação nacional da história do mundo. Aqui a Oeste da Europa, no Centro da memória de um Portugal que, para se libertar no plural, exige a libertação de cada um dos singulares portugueses que somos. Para aqueles que entendem o sebastianismo como uma tolice utópica e passadista, aqui se recordam os efeitos práticos de um mito activista que sempre serviu de pretexto para uma efectiva movimentação para a mudança. Sou dos que acreditam que D. Sebastião ainda não morreu. Venha para sempre o necessário Quinto Império. O do Espírito Santo, Mateus açoriano, e do poder dos sem poder. Se hoje, não, amanhã será. 

Eu sei que Mateus Álvares não vai vencer e que ele até é, conscientemente, um falso D. Sebastião. Também sei que somos apenas oitocentos guerrilheiros encurralados nas falésias de São Julião. Até reconheço que os nossos discursos terão o destino que levou à inevitável derrota do Manuelinho de Évora. A rede estadual-fradesca do invasor e a magnífica pleiâde dos colaboracionistas, aquilo que vossas premiáveis comendas chamam a "bela ordem", já comanda todos os interstícios do formidável vazio de poder gerado pelas muitas homílias hipócritas e pelas imensas sacristias controladas pela prebenda. Mas também sei que somos o sinal do que há-de ser, as mãos livres que, um dia, hão-de vencer e retomar a lusitana antiga liberdade. 

Há frades livres que vão escrevendo novas e apócrifas actas das Cortes de Lamego, por mais que os hutus organizem os planos de genocídio contra os tutsis, com os doces e higiénicos subsídios das internacionais sentadas em Estrasburgo ou Bruxelas, as tais que aqui vêm retratar o nosso progresso turístico, visando transformar-nos em reserva ecológica mundial, esquecendo que há portugueses que querem ser independentes, que querem a efectiva continuidade da independência política de há oitocentos e tal anos e não apenas o reconhecimento e inventário das ONGs que registam selvagens e primitivos actuais. 

Termino assim:

Quase três décadas e meia depois do fim do “antigo regime”, onde a ilusão revolucionária dos cadetes do 28 de Maio virou uma viradeira, mais fradesca do que caceteira, apenas temos de concluir que também este sistema virou situacionista, recuperando fantasmas e preconceitos da viradeira de sempre, sobretudo nas suas facetas de inquisitorialismo e de centralismo, as mesmas que promovem a sucessão de micro-autoritarismos sub-estatais. Pior do que isso: com uma democracia deslumbrada pela eficácia da governabilidade, reforçaram-se as nossas facetas anti-societárias e anti-pluralistas, para gáudio do negocismo dos chamados homens de sucesso.

Porque, sempre que penso neste país resignado ao rotativismo do mais do mesmo, onde os tiques da persiganga recrudescem, apenas tenho que reconhecer que são altos os custos individuais dos que querem praticar a independência dos homens livres. Porque voltámos àquele autoritarismo de rebanho que vive na tristeza do temor reverencial do “yes, minister” ou do “sim, senhor director”. Daí que os detentores do poder não consigam compreender como se vai acumulando a explosividade da revolta que, numa qualquer encruzilhada, pode ser rastilhada por um qualquer acaso procurado, como se traduzem as nossas habituais crises. Só que a próxima será importada dado que a maioria dos factores de poder já não são nacionais...

Presos à pilotagem automática de uma governança sem governo, que se desculpa com a integração europeia e a globalização, deixámo-nos enrodilhar por todos quantos detestam o empreendedorismo e o sentido do risco. Há uma massa cada vez mais inerte e desorganizada que não consegue ser mobilizada para o bem comum, entregando-se alienadamente ao chicote e à cenoura do verticalismo hierarquista do estadão que continua a táctica do enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

Porque há um Estado, filho do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, Afonso Costa e Oliveira Salazar que teve em Soares e Cavaco os principais restauradores. Geraram estes conservadores do que está, mas não do que deve ser, os tais que até se dizem de esquerda, confundindo esta com o estatismo. Não reparam que o Estado absolutista, seja autoritário ou sectário, pode transformar a democracia no desepero de um partido-sistema que, mesmo quando se transfigura no rotativismo bipartidário, não deixa de manter a mentalidade do partido único ou a cair na tentação usurpadora da personalização do poder


Não há esquerdas nem direitas que sejam secularmente políticas, dado que as chamadas “causas” foram usurpadas por certo confessionalismo político-religioso, quase congreganista, do novo politicamente correcto, como se os valores morais fossem monopólio dos fracturantes do esquerdismo, do partido arco-iris, ou da velha sacristia. Daí que quem quiser ser fiel ao velho mas não antiquado humanismo, estóico, renascentista, ou iluminista, corra o risco de ter que passar para o exílio interno, só porque não alinha com o colectivismo sectário de certas congregações, como avisava Orwell.

PS: Só há bocado notei que no blogue ainda tinha as horas de Dili. Andava nove horas à frente do meu tempo. Fiz agora a correcção. Aproveito para uma pequena nota pessoal: os parabéns pelo aniversário da minha querida e única irmã, a Nanda. Até para a semana!