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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.1.09

Para que Cavaco não seja o simples notário da República e para que Sócrates não se transforme no coveiro do regime, livremo-nos do sistema



Regressei, pouco a pouco, vou regressando, com a incómoda sensação de exílio, isto é, de não ter terra e de não ter casa, mas também de não querer ser nómada, ou de me embriagar com a ilusão de haver uma ilha da utopia.  Por isso, assisti à comunicação presidencial de Cavaco, colocando, no discurso político, aquilo que a resistência dos que vivem como pensam tem escrito, nomeadamente, naquilo que um ilustre dignitário deste regime chama submundo, o da chamada blogosfera. 

Contudo, aquele que a Constituição transformou em simples notário da república, apesar de, no caso dos Açores, ser frontalmente desmentido, e muito bem, pelo seu representante em Angra, ao usar a palavra e o discurso como o fez no ano novo que não parece vir a ser um ano bom, deu um pouco de esperança a todos aqueles que querem extirpar, deste sistema, o indiferentismo e a corrupção, para salvarmos o regime, evitando que Sócrates se transforme no coveiro daquilo que ele não é o construtor. Nem ele, nem os banqueiros, nem os políticos feitos bancários e empresários, nem a casta bancoburocrática que se vai alambicando com os restos da mesa do orçamente, só porque é especialista em engenharia subsidiocrática e cunha neofeudal.

Recordo os comentários que ainda ontem fazia para um jornal. Já tivemos maiorias uma absoluta e outra quase absoluta, a que estava apenas dependente de uma fatia de queijo, e ambas, de vitória em vitória, chegaram a uma derrota final a que deram o nome de "tabu", ou de "pântano". O problema é menos de aritmética,  isto é, de soma contabiliística de forças eleitorais e mais de geometria qualitativa quanto ao redesenho da mobilização pelo bem comum. Por outras palavras, não é pelo facto de se reforçar o poder que uma maioria parlamentar dá a um governo, pelas ordens dos directórios partidários, que se consegue a necessária autoridade que gera a obediência pelo consentimento. Basta notar no discurso do Presidente da República do dia 29 de Dezembro, onde o primeiro órgão político eleito por sufrágio universal, insurgindo-se directamente contra o parlamento, também eleito pela mesma forma, o acusou de dependente de interesses partidários, inaugurando-se uma nova época de conflito institucional, depois da coexistência coabitante, a que podemos chamar de presidencialismo contra a partidocracia.

Se Sócrates correr sozinho para a repetição da maioria absoluta, isto é, caso não desista de se assumir como candidato do PS a Primeiro-Ministro, isso significa que os respectivos estudos sondajocráticos lhe permitem estar à beira de conseguir repetir o feito das anteriores eleições. Nesta hipótese, tanto o PSD como o PCP não serão adeptos de qualquer tipo de aliança pré-eleitoral, apenas tendo esperança que os acasos da crise e os discursos presidenciais lhes dêem a prenda de uma maioria relativa e do consequente jogo partidocrático das alianças pós-eleitorais, algumas delas contra-natura. A não ser que o presidente volte aos governos das sua iniciativa, repetindo Eanes, mas sem a refundação do regime à maneira de De Gaulle. O que poderia acontecer se a crise nos forçasse a um bloco central à alemã, tipo aliança sagrada da nossa I República.

Julgo que o situacionismo governamental, caso a crise não se agrave, vai procurar manter, até às eleições, no essencial o nível da bolsa do cidadão, porque, de outro modo, a respectiva vida estaria ameaçada. Nem que seja pelo anúncio de um aumento das expectativas do sonhar é fácil, tipo elogio da baixa europeia das taxas de juros ou do anúncio de um empréstimo extraordinário para funcionários públicos de montante equivalente ao cheque- prenda que os ministros deram a Sócrates para este comprar roupa numa dessas lojas finas que iludem a nossa sociedade de casino.  Por outras palavras, a crise pode não ser suficientemente forte para que o português comum afaste Sócrates. Basta recordar que, depois da Grande Depressão, o New Deal de Roosevelt apenas chegou cerca de um lustro depois, enquanto nós mantínhamos o gesso da ditadura das finanças salazarista que, como dizia Agostinho da Silva, nos entalou a perna em gesso durante quarenta e oito anos, apesar de ele tar ficado sã cinco anos depois...

Tenho dito que o sistema político português, envelhecido e fechado na concha da partidocracia, já não se reduz ao confronto dos situacionistas, com os seus apoios, e dos oposicionistas, com as suas reivindicações. O principal "input" começa a ser o indiferentismo, queé bem pior do que a mera medição do abstencionismo, dado que se aproxima do gesto do "zé povinho". Só que os governos lusitanos, principalmente em rotativismo, têm sabido durar em decadências sistémicas que às vezes duram mais de uma década. Veja-se, por exemplo, o que sucedeu à monarquia liberal, onde, depois do "Ultimatum" que a dessangrou, ainda durou duas décadas.

Sem querer repetir o âmbito da política de cenários, tipo análises de Marcelo, Vitorino e Júdice, nesse que é o latim com que se delicia a partidocracia, para que continue o mais do mesmo... julgo que, infelizmente, vão repetir as metodologias anteriores, elaborando cenários e consultando sondagens, porque acreditam que não haverá suficiente dramtismo para a deriva messiânica. Todos os opositores internos dos partidos da oposição, ao proclamarem a inviabilidade das respectivas lideranças estão a cair na armadilha que lhes lançou o situacionismo, cuja sondajocracia parece favorável a Sócrates que assim corre o risco de se confundir com o regime, só porque o sistema que ele controla o asfixia.

As ameaças continuam :
-Conflito institucional entre os órgãos políticos de soberania, com a culpa a morrer solteira.
-Manutenção da vaca sagrada do actual modelo constitucional de administração da justiça em nome do povo, com a separação das magistraturas e a elefantíase legislativa.
-Impotência no combate à corrupção.

Mas também há novas oportunidades:
-O Presidente da República, em diálogo directo com o eleitorado, asumir-se como o indisciplinador do sistema que está a asfixiar o regime democrático.
-Reforço de um liberalismo não dependente do negocismo e da corrupção, isto é, livre da casta bancoburocrática que gosta da nacionalização dos prejuízos e da privatização dos lucros.
-Restauração de um capitalismo global assente em regulações morais que permitam a justiça e a concorrência da igualdade de oportunidades.

PS: Cuidado com a ilusão das espadas desembainhadas, sejam as do 28 de Maio, sejam as do 25 de Abril, para não falar nas saldanhadas, dos golpes militares dos que já têm mais de oitenta anos e que os cobardes usam como fantoches. Prefiro o programa radical da "Seara Nova"... Logo, não entro em polémica com os maduros da Cruzada Nun'Álvares, mesmo que sejam magistrados que pensam ser o regime. Continuo na senda dos girondins e dos whigs. Não perco tempo com os "moscas", mesmo que tenham subido na hierarquia...