a Sobre o tempo que passa: Constituição 2.0

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.7.09

Constituição 2.0

Daqui a pouco vou ao IDP perorar sobre a Constituição 2.0. E repito o que tenho dito e escrito. A Constituição é um Texto (com maiúsculas divinais, naturalmente) que tem tido vários textos, conforme os pretextos e os contextos. Textos que devem avaliar-se pela autenticidade dos regimes, onde são menos péssimos aqueles onde é menor a distância entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica.

Os textos do nosso Texto, inspirados, sobretudo, pela Escola de Direito Público de Lisboa, apesar de dominantemente glosados e comentado pela congénere de Coimbra, são marcados pela tensão entre o modelo normativista do Estado de Legalidade, procedente da teoria geral do Estado de Jellinek, e a concepção personalista e justicialista do Estado de Direito, sendo dominante uma certa moderação que pretendeu conciliar o humanismo cristão com o humanismo laico, mas com cedência às perspectivas dominantes do positivismo jurídico aggiornato.

Ficámo-nos assim por uma mistura de repentismo de assembleia com o pudim científico dos constitucionalistas, esse híbrido de ciência e revolução, que ora proclama os amanhãs que cantam ora se assume como uma tentativa de antologia de direito comparado. Um Texto que ainda está preso ao imaginário de uma revolução frustrada e onde, aqui e além, abundam ideologismos e utopismos que tendem a transformar o legislador em Pontífice, a lei em Texto e o jurista em Doutor, para utilizarmos as palavras de Pierre Legendre.

Ora, esse conúbio entre certo messianismo marxista e o positivismo cientista, tem levado a alguma confusão entre o sagrado e o profano, sem que consiga destrinçar-se o real do imaginário e a lógica do mito.

Mantém-se também aquele messianismo constituinte que levou o deputado-jurista de todos os partidos a assumir-se como uma espécie de João das Regras de uma nova Idade de Ouro, género que talvez deva pertencer a um certo pretérito imperfeito e não servir de lição para o futuro. Principalmente quando continuam as ilusões de se fazer uma constituição que dure até à consumação dos séculos, como proclamava o vintismo de Borges Carneiro. Aliás, tal vanguardismo, dito racionalista, talvez não passe de mero regresso ao mágico.

Se importa tentar conciliar o racional-normativo com a nossa tradição simbólica, não desligando a política do sonho e afastando as tentações da engenharia social, temos de reconhecer que, apesar do esforço pedagógico e científico de toda uma geração de constitucionalistas pós-revolucionários, bem como da vigilância político-jurídica dos diligentes membros do Tribunal Constitucional, não conseguimos iludir a realidade de quase sempre termos vivido em regime de manifesta inconstitucionalidade por omissão.

Especialmente quando os governos e as maiorias parlamentares deixaram de ter como objectivo o abrir o caminho ao socialismo, porque, desde então, governar e legislar transformaram-se em exercícios de quotidiana fraude à lei constitucional.
Um simulacro que permitiu que se fomentasse uma certa hipocrisia social, contribuindo para que o direito se afastasse da vida, numa duplicidade que permitiu a economia paralela, a evasão fiscal, a corrupção e todo o vazio ético que desprestigiou a democracia e o Estado de Direito.

Talvez importe eliminar todos os programáticos ideológicos e utópicos, reduzindo o texto constitucional apenas àquilo que pode cumprir-se, desde os direitos, liberdades e garantias às regras de organização do poder político e retendo, do programático, não as ideologias conjunturais, mas apenas o simbólico nacional, poeticamente libertacionista.